terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Suplemento infantil

Irmãs gêmeas de 8 anos vêm a consulta por encaminhamento da pediatra por estarem muito acima do peso.
Irmãs gêmeas iguais, muito iguais!, e gordinhas iguais!, e vestidas iguais!
Nasceram de gravidez gemelar com 37 semanas, pesando 2040 e 2240g, e as duas com 42cm de comprimento.
Já saíram da maternidade usando NAN.
Com 4 meses de idade (segundo a mãe), com objetivo de ganhar peso mais rapidamente, receberam da pediatra a prescrição de um suplemento.
<Tirem as crianças da sala! este post contém cenas chocantes e é proibido para menores de 18 anos!>
O suplemento, pois:
- Leite Ninho + sorvete + biscoitos de maisena + mamão
Bater no liquidificador tudo junto e dar na mamadeira.
Isso deve ter as calorias de um Big Mac, de uma taça Viena, de um Thunder do Outback. Pelo menos proporcionalmente.

Paxonei!

Atendendo uma menina de 5 anos e meio.
- Minha festa de 6 anos vai ser da Monster High.
- E você vai chamar todos os vampiros?
- Aaaah, tio! Vampiro não existe! Só o que existe é ciência!
Paxonei!
- Tio, você sabe fazer um arco-íris?
- Não! Como é que faz?
- Você precisa de um balde de água, um espelho e de uma folha de papel. E precisa fazer sol. Você coloca o espelho dentro da água e aponta o sol para o papel. Vai aparecer um arco-íris.
Paxonei!

Entre o açúcar e a pólvora

Nem só de casos bonitinhos vive o ambulatório do Cardoso Fontes.
B. tem 34 anos e é portador de diabetes tipo 1 desde os 2 anos de idade. Desde que está comigo, há 9 anos, nunca se tratou direito. Mantém sempre a hemoglobina glicada maior que 10,0%. Isso quando faz exame! Isso quando volta para consulta! Tem neuropatia periférica e retinopatia proliferativa. O Detran não renovou sua carteira de motorista, mas trabalha como motorista. Era instrutor de auto-escola, virou motorista particular de madame, virou piloto de van. Há 6 meses eu não vejo seus exames de sangue e mapa de glicemia capilar.
Hoje veio mais uma vez sem nenhum exame. Estava bastante emagrecido. Pedi que passasse na enfermagem para medir a glicose. Voltou com o resultado: 510 mg%.
Pedi que fosse ao laboratório dosar com urgência a glicemia, função renal, sódio, potássio e a gasometria venosa. Depois você espera o resultado e eu vejo se está em cetoacidose, se precisa internar.
- Doutor, não posso esperar, tenho que voltar para trabalhar.
- B., você não está entendendo. Cetoacidose é uma complicação aguda grave do diabetes. Se você não tratar, pode morrer.
- Doutor, o senhor não está entendendo. Eu peguei dinheiro emprestado com a milícia pra comprar meu carro, e se eu não pagar até dia 10, eles me matam.
- Mas cliente morto não paga.
- E cliente que não paga é morto.

Posso comer pudim?


Meu pacientinho de 6 anos com diabetes tipo 1, com hemoglobina glicada < 6,0%, me traz uma carta. Depois do Temer para a Dilma a gente fica meio com medo de receber cartas. Mas essa não tem do que se ter medo.

Doutor Flavio, você pode me falar a resposta se eu posso comer um pedação de bolo, pudim, brigadeiro, lasanha.

Isso é covardia! Como dizer não para uma pergunta tão fofa?

Respondendo ao Guilherme, e a todos os diabéticos que se e nos fazem esse tipo de pergunta:

Nosso principal objetivo é controlar a glicose. Da forma que for necessário. Nosso objetivo não é restringir a alimentação. Não se isso não for necessário.

Se a sua glicose está boa, e se depois de comer o doce sua glicose continua boa, que mal fez o doce? Nenhum.

Para que a glicose boa continue boa depois de comer (doce ou qualquer outra coisa) é preciso saber qual a dose de insulina de ação rápida a ser aplicada. Se não usar nada, grande chance de a glicose subir muito.

Então, se a glicose está boa, você prevê que vai comer doce, calcula a dose necessária de insulina, aplica, come, mede a glicemia um tempo depois e a glicose continua boa, mais uma vez, que mal fez? Exato, nenhum.

No entanto, se o diabético faz isso com muita frequência, por mais que a glicose e a hemoglobina glicada não subam, vai acontecer o que acontece com todo mundo que come muito: vai engordar. E isso não é bom para ninguém, muito menos para o diabético.

Em resumo: poder, pode.
Desde que não descompense a glicemia.
Desde que seja eventualmente.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Recebendo alta

Sair do hospital sem você é como voltar de uma viagem e lembrar que deixei atrás da porta do quarto do hotel o meu coração. A barriga está vazia e o quarto está vazio. Queria poder acordar com seu choro, queria poder te botar no colo e fazer o choro passar, queria te botar no peito da mamãe, queria ver teu sorriso, aquele que eu quero achar que é pra mim mas que ainda é ato reflexo.
Minha PIGminha vai pegar o peito amanhã, vai ganhar peso, vai voltar pra casa. Ainda pode demorar um pouquinho, mas vai voltar. Pode passar o Natal lá, mas o Ano Novo deve ser em casa.
A todos que nos desejaram parabéns, a todos que direcionaram para nós suas curtidas, seus pensamentos positivos, as orações e a torcida, nosso muito obrigado.
Letícia só está na UTI Neonatal para ganhar peso. Passa bem, está super acordada, super ativa. Plantão após plantão a enfermagem diz que é um bebê tranquilo, que dá pouco trabalho. Mamando o leite da mamãe a partir de amanhã, vai poder sair da hidratação venosa, ganhar peso mais rápido, voltar pra casa mais cedo.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

18 de dezembro

Letícia ouviu dizer que capricórnio não combina com o escorpião do pai, com gêmeos da mãe, que seria melhor que fosse sagitário, e resolveu sair mais cedo. Com a cesárea marcada, Letícia pôde ter seu signo escolhido, seu ascendente, a casa ocupada por Plutão, a fim de combinar da melhor forma possível com a numerologia de L-E-T-Í-C-I-A.
Assim Letícia virá à luz dia 18 de dezembro, dia de Nossa Senhora do Bom Parto.
***
Humor à parte, o que tem de verdade nessa história é que Letícia vai realmente nascer sexta-feira dia 18. Os motivos são médicos mesmo, e não astrológicos. E sim, por acaso é dia de Nossa Senhora do Bom Parto. E por acaso pesquisando o dia 18 de dezembro eu descobri isso. Por acaso. Também é o aniversário de Keith Richard, Steve Biko, Steven Spielberg, Brad Pitt, Arantxa Sánchez, Katie Holmes. Por acaso. É o Dia Mundial da Concientização do Autismo, e o Dia Nacional do Museólogo. Por acaso.
***
Dizem que nada é por acaso.
Talvez Letícia trabalhe no Museu do Autismo, uma instituição financiada por Brad Pitt e Steven Spielberg, cuja inauguração contará com um show de Keith Richard.
Ou talvez não. Mais provável que não. Mas pode ser. Quem sabe?

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Alvos móveis... Atropelamento e fuga

Vindo do Hospital Cardoso Fontes para a Taquara hoje à hora do almoço, booooom!, eu estava na Av. Geremário Dantas próximo à rua Cândido de Figueiredo (para quem não liga o nome à pessoa, a ladeira que tem o Banco do Brasil à esquina, e que no alto tem o Colégio Estadual Stella Matutina) quando um carro veio sabe-se lá de onde, uma estudante veio sabe-se lá de onde, ela foi jogada para o alto e caiu no asfalto. O carro vinha em sentido contrário ao meu, Taquara -> Pechincha. Atravessei a pista contrária e parei sobre a calçada. Corri para a menina estirada no chão de barriga para baixo, acordada ma non troppo, com o lábio sangrando e a lateral esquerda da cabeça arranhada.
Um e outro pedestres tentavam desvirá-la.
- Não, parem, não façam isso. Alguém ligue para os Bombeiros. Como você se chama? Está me ouvindo?
Fez que sim com o pescoço e respondeu:
- Tamires (se com H ou Y, ou escrito de alguma outra forma, não importa, foneticamente ela se chamava Tamires).
-Tente não mexer o pescoço. Está me entendendo?
Fez que sim com o pescoço mais uma vez.
- Responda falando. Não mexa o pescoço.
Em menos de 2 minutos chegou a ambulância do SAMU e levou Tamires para algum hospital de emergência.
O motorista? Estava sem carteira e sem documento do carro. Ficou em casa! Eu só dei uma saída rapidinho.
Voltei para meu caro. Agora eu estava do outro lado da rua, parado na calçada. Logo adiante tinha um posto de gasolina. Andei pela calçada até onde eu poderia fazer o retorno com mais tranquilidade e espaço.
- De onde você está vindo? - perguntou-me o PM ao me ver dirigindo pela calçada.
- Sou médico e parei aqui para ajudar a moça que sofreu acidente. Agora preciso pegar aquela rua logo ali. - apontei para a ladeira da Cândido de Figueiredo.
Muito a contragosto ele soltou um Ok, pode ir, e me deixou seguir para o consultório sem maiores perguntas.
Espero que Tamires esteja bem.

* * *

A vida é um bumerangue. O que vai, volta. E se você não está atento, volta na sua cabeça.
Paciente de 55 anos chegou a consulta há 3 meses com glicose de mais de 300mg%, com HbA1c 12,2%. Muitos prescreveriam insulina, o que não seria errado; aliás, para muitos, errado é o que eu fiz: prescrevi uma medicação combinada de glibenclamida + metformina em dose máxima e confiei que a glicose baixaria.
Hoje voltou com exames novos, e a HbA1c baixou para 8,3%.
- E olha, doutor, que essa semana ainda passei por um estresse brabo! Acredita que a minha filha foi atropelada segunda-feira aqui no Tanque? Ela estava saindo da escola e...
Pensei cá comigo: segunda-feira, Tanque, uniforme de escola.
- Tamires?
- É sim! - me olhou espantado - o senhor conhece ela?
- Pois se fui eu que, vindo para cá, vi o atropelamento, parei o carro e fiz os primeiros socorros até o SAMU chegar!
Deu para ouvir os pelos de um e de outro se arrepiando em uníssono.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Vencendo barreiras

Minha primeira paciente do dia é uma menina de 4 anos que entra com seu andador e um sorriso de orelha a orelha, soltando as mãos apenas para me dar um abraço bem apertado.
Nasceu com mielomeningocele e hidrocefalia. No primeiro dia de vida foi submetida a cirurgia para fechamento da meningocele; e com 15 dias, para colocação de derivação ventrículo-peritonial.
E cresceu e se desenvolveu, depois de outras e outras cirurgias e fisioterapias e tudo o mais. Hoje anda bem com o andador e com as duas mãos dadas, e mais ou menos com uma só mão. Fala bem, presta atenção em tudo e dá umas respostas que a gente não espera. Que não se esperam mais pela idade do que pela condição física, porque isso não parece ter afetado o desenvolvimento cognitivo.
Três meses atrás internou com hipertensão intracraniana. A DVP estava entupida e foi substituída. Foi iniciada acetazolamida.
Um mês depois, começou a perder peso, a pedir muita água e a urinar muito. Alguém lhes emprestou um glicosímetro. 480mg%. Foi levada para uma emergência, onde se diagnosticou a cetoacidose.
Hoje está bem, em lua de mel com o diabetes tipo 1.
E vai vencer mais uma parada como vem vencendo as outras.
É um amor, é carinhosa, é inteligente - e foi a primeira vez comigo! - e isso não tem hidrocefalia que impeça, não tem diabetes que tire.

domingo, 30 de agosto de 2015

X-Man

Em Medicina aprendemos a tentar encaixar todos os sinais e sintomas de uma apresentação clínica em um mesmo diagnóstico. Ou em diagnósticos que tenham alguma afinidade fisiopatológica entre si, como diabetes tipo 2 e hipertensão arterial; ou diabetes tipo 1 e hipotireoidismo.

Afinal, qual a probabilidade de uma pessoa desenvolver ao mesmo tempo duas doenças diferentes ao mesmo tempo?
Mais ainda: qual a probabilidade de uma pessoa herdar duas doenças genéticas raras e não relacionadas?

Imagine uma doença genética por mutação esporádica com incidência de 1 caso por 150.000 nascimentos vivos.
A doença provoca ausência de desenvolvimento de células vermelhas do sangue ao nascimento, levando a anemia profunda.

Imagine uma doença genética de herança autossômica dominante com incidência de menos de 1 caso por milhão de nascimentos vivos, descrita em múltiplos membros de 10 famílias no mundo todo.
A doença provoca crises convulsivas neonatais a partir de 1 semana e até 1 ano de idade.

Imagine-se, então, antes dos diagnósticos.
O pediatra está diante de uma criança com 1 mês de vida, com anemia progressiva desde o nascimento e que começa a apresentar crises convulsivas.
O irmão mais velho também tivera crises convulsivas neonatais 2 anos antes, o que facilita pensar em uma doença genética. Mas como encaixar a anemia?

*  *  *

Esse paciente não é do consultório.
É meu irmão.
O tal irmão dois anos mais velho sou eu.
Depois disso, ainda tivemos uma irmã, e mais recentemente meu irmão teve um filho, todos com as mesmas convulsões.
Meu pai é engenheiro, eu sou médico, meu irmão é professor de Português em vias de concluir o mestrado, minha irmã é bióloga, e meu sobrinho é a criança de 7 anos mais esperta do mundo. Ninguém teve sequelas das crises convulsivas e nem tornou a tê-las depois de concluído o tratamento com a idade de 2 anos.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

O retrato da felicidade

D. Maria é natural de Coronel Fabriciano, no interior de Minas Gerais, a 10h de viagem do Rio de Janeiro. Hoje D. Maria tem 66 anos. Mudou-se para o Rio há 46 anos e nunca mais ouviu falar da família. Não faz ideia de se os pais são vivos, os irmãos, tios, sobrinhos... Nunca se casou e não tem filhos. Há 7 anos ficou cega por causa do diabetes e mora em um asilo de religiosas em Jacarepaguá. Todo dia de consulta uma irmã a leva para o hospital com as receitas e as medidas de glicemia capilar feitas 3 vezes por dia.
Desde que eu conheço D. Maria eu brinco que vou mandar uma carta pro Luciano Huck contando a história dela pra ela se reencontrar com a família e aparecer na tevê.
Hoje ela chegou com um sorriso de orelha a orelha.
- Você não vai acreditar!
- O que foi?
- Eu conversei com a minha família.
E me narrou.
Uma irmã entrou em contato com o município e contou a história. Uma rádio local reproduziu e conclamou que se alguém achasse a história de D. Maria familiar, que entrasse em contato com o número tal no Rio de Janeiro.
E um dia, sem saber de nada, recebeu uma ligação da irmã.
- E como a senhora se sentiu ao falar com a sua irmã depois de tanto tempo?
Ela não respondeu. Aliás... respondeu sim... com lágrimas em vez palavras. Melhor resposta não há.
- Eu nem sabia se ainda tinha alguém vivo! São três irmãs e um irmão, e vinte e sete sobrinhos. Até minha mãe está viva!
- A senhora falou com ela?
- Ainda não...
- É bom ter um cardiologista do lado, hein... pra se ela enfartar com a notícia.
Eu chorei junto.
Ela não viu. Mas deve ter percebido.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Paciente (quase) médica

Outro dia uma pacientinha de 7 anos do consultório me deixou preocupado. Comigo mesmo.
Eu a examinei e não tinha nada demais. A família se preocupava com a baixa estatura, mas estava dentro do padrão genético familiar. Medi, pesei, auscultei, medi pressão, examinei abdômen, genitália e nada.
Tirei o estetoscópio do pescoço e perguntei se ela queria ouvir seu coração. Ela aceitou. E ficou entusiasmada com o que ouviu, tanto que ficou repetindo tum ta tum ta no mesmo ritmo.
Com as olivas ainda no ouvido dela, peguei a outra ponta e coloquei no meu coração.
- É igual? - perguntei.
- Não! - respondeu rindo.
- Não??! Qual a diferença? Será que meu coração parou e eu sou um fantasma?
- Não! O seu é mais rápido!
Ao final da consulta tomei meu pulso radial e contei 100 batimentos em um minuto. Minha doutora tinha razão.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Osteogênese imperfecta

Já é o terceiro ano que eu sou convidado para dar uma aula sobre "Doenças ósteo-metabólicas mais comuns da infância" para a turma de pós-graduação em Endocrinologia da Santa Casa, RJ.
Uma das doenças de que eu falei é a Osteogênese Imperfecta.
É um conjunto de doenças genéticas que têm em comum um defeito na síntese de colágeno, proteína importante para a formação do osso. Nessas condições, o osso formado é extremamente frágil, quebrando com facilidade, com traumas mínimos, às vezes sem nem trauma. Nas formas mais graves, as fraturas já podem ser vistas no ultrassom obstétrico a partir da 14ª semana de gestação.
Mas as formas mais brandas têm expectativa de vida bem maior. O diagnóstico geralmente é feito pela presença de fraturas em vários ossos, com diferentes graus de consolidação. Algumas outras características podem estar presentes, como a esclera (o branco do olho) azulada, má formação dentária, déficit auditivo; mas dá para imaginar que o principal diagnóstico diferencial seja com violência doméstica.
Um estudo feito em Seattle, WA (EUA) avaliou retrospectivamente o prontuário de 262 crianças com suspeita de abuso físico, e reconvocaram as famílias para colher material para o exame conclusivo de Osteogênese Imperfecta.
Dessas, 11 tiveram o resultado positivo, e outras 11 um resultado inconclusivo.
Nessa amostra de 262 crianças, algo entre 11 e 22 (4,2 e 8,4%) têm uma doença genética como responsável pelas fraturas. Bem, a causa mais comum continua sendo, infelizmente, a violência doméstica. Mas imagina só como essas famílias se sentiram ao serem acusadas injustamente de terem provocado as lesões nos seus filhos!

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Dos perigos de usar remédios por conta própria

D.S.S. veio à primeira consulta com 2 anos 3 meses, em Set/2012. A mãe se queixava de ganho de peso muito rápido desde os 10 meses e parada de crescimento a partir dos 2 anos.
Trouxe as anotações do pediatra na caderneta de vacinação.
Mostrava que de fato a partir dos 10 meses ele saiu de um peso no percentil 10; e com 1 ano 6 meses estava no percentil 95. A altura se mantinha no percentil 25.
À consulta, estava pesando 18,9kg e media 87cm.
Fiz algumas orientações quanto à alimentação e pedi alguns exames.
Ele voltou 5 meses depois. Tinha perdido 1,15kg. E não tinha crescido nenhum centímetro. Nem meio.
Dentre os exames alterados, uma leucocitose de 21 mil; insulina 46,51 mU/mL; Testosterona, SDHEA, Androstenediona indosáveis; Cortisol 0,7 mcg/dL; 17 OH Progesterona 12,1 ng/dL.
A quem sabe interpretar os exames, isso sugere como primeira possibilidade o uso de algum remédio com corticoide; e a segunda, a terceira e a quarta opção, o uso de algum remédio com corticoide.
- Ele está usando algum remédio?
- Não.
- Nenhum remédio à base de corticoide?
- Não...
- Algum xarope, pomada, creme, gel, loção, colírio, gota otológica...?
- Não.
- Aaaaah, doutor... tem uma coisa! Sempre que ele está atacado da alergia a gente dá um xarope 2 vezes por dia por 7 dias.
- E com que frequência ele precisa?
- Pelo menos umas duas vezes por mês.
- Qual o nome do xarope?
- Prednisolona.
Retirado o remédio - com cuidado! - rapidamente o peso foi de muito acima do percentil 95 para o 75; e a altura, que havia estacionado e chegado ao percentil 5, vem acelerando até hoje e já passou o percentil 50.

domingo, 7 de junho de 2015

O que é uma doença?

Nós médicos passamos os dias em torno dessa entidade, a doença, sem se perguntar o que exatamente isso quer dizer. Talvez por parecer óbvia a resposta. Mas se é mesmo tão óbvia, digam-me, amigos médicos; digam-me, amigos não-médicos, profissionais da área de saúde, pacientes, familiares de pacientes: o que é uma doença?
Georges Canguillem escreveu um livro inteiro sobre isso, "O normal e o patológico", um tratado filosófico sobre, como sugere o título, o que diferencia o estado normal do estado patológico. Mas eu vou tentar ser mais breve.
Eu definiria "doença" como uma condição que aumenta a probabilidade de um evento indesejado - manifestações que atrapalhem o seu dia a dia, que diminuam sua qualidade de vida ou que antecipem significativamente a morte.
Uma "doença bem tratada" é aquela que, mediante alguma intervenção, tem a probabilidade do evento indesejado restabelecida para níveis basais.
Peguemos o diabetes mellitus tipo 2 (DM2).
Ele é caracterizado por níveis de glicose em jejum iguais a ou maiores que 126mg%; ou 200mg% 2 horas depois de uma sobrecarga de 75g de dextrosol.
Esses pontos de corte se revelaram adequados para prever o risco aumentado de complicações microvasculares (na retina, nos rins e nos nervos periféricos) e macrovasculares (doença cardiovascular) relacionados à hiperglicemia.
O hormônio que evita a elevação da glicose é a insulina. As células beta pancreáticas produzem uma quantidade basal, à qual se soma uma "dose" liberada por estímulo da alimentação.
O excesso de gordura abdominal produz hormônios e substâncias inflamatórias que ao mesmo tempo interferem na função da insulina (gerando resistência insulínica) e matam as células beta (levando a menor produção).
Os níveis de glicose começam a aumentar quando a quantidade de insulina que o corpo consegue produzir é menor que o quanto precisa.
Então, ter a glicose alta é uma doença porque aumenta o risco de o sujeito desenvolver doença renal, que em último estágio leva a precisar de hemodiálise; doença retiniana, que provoca à cegueira; doença nos nervos periféricos, com formigamento, dor ou perda da sensibilidade nos pés e nas mãos; doença cardiovascular, com infarto do miocárdio, insuficiência cardíaca acidente vascular cerebral e doença arterial periférica. Tudo isso junto – ou cada um isoladamente – piora a qualidade de vida e aumenta o risco de morte.
Quanto a isso não há dúvida.
Diz-se que o DM2 não tem cura. Mas é possível que, ao seguir um plano alimentar adequado, fazer exercícios físicos regulares, e por consequência perder peso, o paciente reduza substancialmente os fatores que provocam resistência insulínica e a necessidade de insulina volte a ser menor que a capacidade de produção.
Nesse caso, ele pode se manter sem hiperglicemia, sem inflamação vascular, sem medicação – e sem o risco adicional de agravos à sua saúde e bem estar atribuível ao diabetes .
Entendo que não se fale em cura, porque esse estado é frágil. Se por qualquer descuido ele voltar a ganhar peso, todo o processo patológico vai voltar a agir. Mas eu chamaria de remissão; um estado de não-doença com risco de tornar a ser doença.

Emergência em Diabetes

Quando Emergência se torna um lugar de tratar sintomas, sem se importar com o todo, acontecem coisas assim.
Paciente de 14 anos com queixa de dispneia.
Nebulização com Berotec e Atrovent.
Hidrocortisona.
Solicito radiografia de tórax.
Acontece que o paciente de 14 anos tem diabetes tipo 1, que tinha vindo de um município distante para consulta na Endocrinologia Pediátrica, e ao ser examinado foram detectadas estertorações à ausculta. Por isso foi encaminhado à Emergência.
Alguém perguntou se ele tinha alguma doença? Se fazia algum tratamento? Se usava alguma medicação?
Alguém se incomodou de pedir uma glicemia capilar? Uma gasometria? Alguém pensou se podia ser uma cetoacidose diabética?
Não foi por pressa. Não tinha mais ninguém para ser atendido quando eu cheguei e o menino esperava a nebulização e o médico via qualquer no celular.
E não. Ele não era cubano.

Parto cesáreo ou normal

Se os médicos quebrarmos a estratégia suicida de eu sei, eu faço, eu mando, pronto e acabou, vai ser melhor pra todo mundo.
O parto é, além de uma questão técnica, de respeito à mulher, ao seu corpo, às suas escolhas.
E mesmo tecnicamente, uma das consequências é a perda da confiança na hora de indicar corretamente o parto cesáreo

domingo, 3 de maio de 2015

Ginástica encolhe? Natação faz crescer?

Caros amigos endocrinologistas pediátricos, vocês acham possível abstrair de toda a teoria e assistir a uma competição de ginástica artística sem se questionar como será o cariótipo daquela menina, qual será a estatura de seus pais, quando fez sua última idade óssea e qual era sua previsão de estatura final pelo método de Bayley-Pinneau? Ela é Tanner M1 como a falta de abaulamento torácico sob o collant sugere?
Flavia Saraiva foi medalhista de ouro no solo e prata na trave na etapa brasileira da Copa do Mundo de ginástica artística, no estádio do Ibirapuera, em São Paulo. Demonstra precisão impressionante nos movimentos acrobáticos e graciosidade na dança. Mas o que mais me impressiona é que, aos 15 anos e 7 meses de idade, tem 133cm de altura e 31kg. Não que os saltos duplos, triplos, twists, grupados, carpados não impressionem; mas, cara, ela é muito pequena! Para o gráfico de crescimento, certamente; mas inclusive ao lado de outras atletas da mesma competição. Se tivesse um gráfico de crescimento de ginastas, ainda assim imagino que ela estaria com baixa estatura.
Dizem que a prática de ginástica artística na infância e adolescência diminui a expectativa de crescimento das crianças. É uma pergunta frequente dos pais. Assim como o contrário, que esportes como basquete e natação fazem crescer mais.
Não é verdade.
Georgopoulos e colaboradores publicaram em 2011 um estudo de corte transversal mostrando que a estatura final de atletas de ginástica artística era dentro da expectativa genética. Um estudo colaborativo entre EUA, Canadá, Reino Unido, Bélgica e Austrália chegou à mesma conclusão (Malina et al, 2013).
O que acontece é que na infância todas as crianças podem fazer qualquer atividade física. Em uma mesma aula de ginástica artística ou de natação você pode encontrar crianças altas, baixas, magras, gordas, de todo jeito. Mas aqueles que vão se tornar as nossas referências, os atletas de ponta, são os que mais se destacarem na atividade; os que tiverem o biotipo mais adequado para realizar aqueles movimentos. Um nadador alto leva vantagem sobre o baixo; a ginasta baixa leva vantagem sobre a alta.
O que não impede que algumas tenham algum problema de crescimento de fato, como é o caso da ginasta americana Melissa Anne Marlowe, portadora de síndrome de Turner que competiu nas Olimpíadas de 1988 em Seul.

Menino ou menina?

Quinta-feira à tarde. Chego ao ambulatório do Hospital Cardoso Fontes e meu primeiro paciente é uma consulta de primeira vez vinda de São Pedro d'Aldeia, município da Região dos Lagos fluminense. A ficha diz L., um nome do sexo feminino, e a primeira coisa que os pais me dizem ao entrar é que agora se chama R., nome do sexo masculino. Que eles estão usando todos os recursos judiciários para mudança civil do nome de registro.
Ok, R., então. Um menino.
Durante quase toda a gravidez as ultra-sonografias obstétricas diziam ser uma menina. No oitavo mês, no entanto, o médico viu alguma coisa que mudou a sua opinião.
Ao nascer, três meses atrás, os pediatras da sala de parto reconheceram a genitália ambígua, mas designaram o sexo de nascimento feminino no registro civil, solicitaram um cariótipo e encaminharam a assim chamada recém-nascida para investigação endócrina.
O cariótipo ficou pronto antes da consulta. Os pais leram o resultado: 46, XY. E procuraram na internet o que aquilo queria dizer. E de repente tudo que era rosa virou azul, tudo que era barbie virou carrinho, tudo que era para a L. virou para o R. A cabeça deles estava uma bagunça; e a cabeça da irmã de 10 anos, uma bagunça um pouco maior.
Menina ou menino, afinal?
Até 6 a 7 semanas de gestação, o embrião apresenta gônadas indiferenciadas, primórdios dos dutos genitais internos masculinos e femininos (de Wolff e de Müller, respectivamente) e rudimentos genitais externos (tubérculo genital, pregas genitais, eminências lábio-escrotais e seio urogenital).
A presença do cromossomo Y, em especial do gene SRY, estimula diferenciação das gônadas em testículos; e os hormônios testiculares testosterona e hormônio anti-mülleriano promovem masculinização da genitália interna (desenvolvimento dos dutos de Wolff em epidídimos e dutos deferentes; e regressão dos dutos de Müller) e virilização da genitália externa (tubérculo genital em glande; pregas genitais em corpo do pênis; e eminências lábio-escrotais em bolsa escrotal).
A ausência do gene SRY faz com que as gônadas se diferenciem em ovários a partir da 10ª semana de gestação. A ausência de testosterona e hormônio anti-mülleriano promovem feminilização da genitália interna (desenvolvimento dos dutos de Müller em trompas, útero e 1/3 distal da vagina; e regressão dos dutos de Wolff) e da genitália externa (tubérculo genital em clitóris; pregas genitais em pequenos lábios; e eminências lábio-escrotais em grandes lábios).
Uma série de mutações genéticas podem provocar alteração na produção ou sensibilidade aos hormônios responsáveis pela diferenciação sexual, e portanto excesso de virilização em indivíduos XX ou o oposto, virilização insuficiente em indivíduos XY.
Em alguns casos, o(a) recém-nascido(a) já nasce com algum grau de ambiguidade genital. Isso quer dizer que a genitália externa não é tipicamente masculina ou feminina. Isso pode - e deve! - ser identificado já na sala de parto, e indica urgência em identificar a causa. Durante esse período, pode-se pedir adiamento do registro civil até que se tenha um diagnóstico.
Voltando ao caso em questão, o exame físico confirmou a ambiguidade genital. O falo tinha característica peniana, mas com tamanho pequeno e abertura da uretra no períneo (hipospádia); as eminências lábio-escrotais apresentavam abertura anterior e fusão posterior; à direita uma gônada podia ser palpada em posição escrotal, e à esquerda em posição inguinal.
Sim, tratava-se de uma genitália ambígua. Mas, diferente do gênero designado na sala de parto, tinha muito mais características masculinas que femininas. Ok, pode-se dizer que eu tenha sido influenciado por já saber o resultado do cariótipo; mas não, ter gônadas palpáveis sugere fortemente o sexo masculino. Ainda assim, independente do que eu achasse ou deixasse de achar, o mais correto é adiar a designação de gênero até que se tenha um diagnóstico.
O mais recompensador de tudo, no entanto, aconteceu ao fim da consulta. Não é uma situação fácil para os pais; aliás, muito pelo contrário, costuma ser bastante complicado. Durante a gestação, os pais escolhem nome, e criam expectativas, e decoram o quarto, e compram roupas, e contam para todo mundo... para de repente mudar tudo e o que era a L. vira o R.
- Você já acompanhou alguém assim? - me perguntou a mãe.
- Olha, não é uma condição assim tão comum, mas sim, eu já acompanhei alguns casos.
- Você não tem ideia...
- Ideia eu tenho. Não é fácil mesmo! Uns lidam melhor, outros lidam pior. E pelo que eu estou vendo até aqui, até que vocês estão lidando muito bem com essa situação.
- Você não tem ideia de como você tranquilizou a gente!
Bom... eu tento!

Amor materno maior que tudo

Acompanho E.S.D.S. desde os 14 anos de idade, 3 anos depois de ela se descobrir diabética tipo 1. Aos 21 anos, casada, espera seu primeiro filho. Eu a enchi de parabéns quando soube, apesar de ela própria achar que era cedo. O controle glicêmico estava muito ruim, com a HbA1c de 12,0% no último exame pré-gestacional.
Eu propus: a partir daqui vamos nos ver todos os meses, você vai usar rigorosamente todas as doses de insulina [ela se recusava a levar a insulina para o trabalho, por vergonha de os outros saberem de sua condição], e você vai medir sua glicemia antes e 2h depois de café, almoço e jantar.
Hoje ela está com 31 semanas e me levou as anotações de glicemia capilar do último mês.
A HbA1c já baixou para 8,1%, o que não é exatamente ideal, mas é incomparavelmente melhor do que ela vinha apresentando.
As médias de glicemia capilar estão (antes/depois): no café 65/83; no almoço 109/134; e no jantar 94/149, com doses cada vez menores de insulina [porque agora está efetivamente usando].
A barriguinha de grávida está lindinha e a bebezinha agradece. Seu meio-ambiente está muito mais saudável desse jeito, permitindo que ela cresça e se desenvolva melhor.
Só espero que tenha servido de lição que o controle glicêmico adequado é possível, e que continue assim depois que essa fase passar.

Poesia do dia a dia

E da série Poesia do dia a dia, de alguém que não se sabe poeta, mas descreve sua condição como um legítimo.
E.Y.U., 75 anos, boliviano radicado no Brasil há quase 60 anos.
Diabético tipo 2, algumas consultas atrás me confidenciou ter perdido agudamente a visão do olho direito. "Só enxergo contraste de preto e branco." Mostrei uma folha de marcação de consulta e perguntei se ele lia. "Vejo uma faixa preta [onde estava escrito o título, com letras maiores]".
Encaminhei para a Oftalmologia, e hoje ele voltou operado.
- Era uma catarata muito grossa! Doutor, na última consulta o senhor falou: "quero que o senhor volte me enxergando bem". Eu nunca enxerguei tão bem. As cores... Parece que pintaram o mundo!

O caso do guerrilheiro

Não é só de crianças fofinhas que meus dias no Hospital Cardoso Fontes são recheados.
E.O.S., sexo masculino, 75 anos. Vem à consulta acompanhado pela filha. Comenta:
- Eu nasci durante a guerra, doutor! [em 1940, referindo-se à II Guerra Mundial]
- Eu também, Sr. E. Durante a guerra contra a ditadura militar.
- Sabe, doutor... eu fui preso político durante a ditadura.
- Sério, Sr. E.? Me conta! Como foi isso?
- Eu era um dos líderes dos Grupos dos Onze, junto com o Brizola. A gente estava se preparando para pegar em armas contra o golpe quando eu fui preso.
- Pai! Você nunca me contou isso! - surpreendeu-se a filha - Pegar em armas? Você ia matar alguém? Quem, o presidente? Os governantes?
- Eu fui o único do meu grupo a ser preso. Fiquei mais ou menos uma semana. Não passei ninguém.
Fiquei impressionado com a filha não saber da história pessoal do pai. Ok, ele ainda era solteiro e ela ainda não tinha nascido. Mas ser filha de alguém sobre que os livros de História deveriam falar e descobrir assim, em uma consulta ao médico, tantos anos depois, é de cortar o coração.

Gestação em diabetes

Los Hermanos cantam:
"Quem sabe o que é ter e perder alguém..."
Taí uma coisa que eu contei pra pouca gente, mas que de vez em quando eu lembro e fico feliz e fico triste e nem sei bem o que pensar.
Em algum momento perto do fim do ano passado uma paciente minha do Hospital Cardoso Fontes me disse estar grávida.
Eu a acompanho desde os 11 anos, enquanto estava só acima do peso e com exames de glicose e lipídios alterados, e eu a avisava que corria risco de ficar diabética. Algum tempo depois ela de fato desenvolveu diabetes mellitus tipo 2, e a gente começou a tratar, primeiro com medicações orais, depois em associação com insulina. Se não me engano, dos meus pacientes é até hoje a mais nova a desenvolver diabetes tipo 2.
E lá se vão oito anos.
Ela tinha 19 anos quando me avisou da gravidez. Ainda tem. O diabetes estava longe do bom controle, e a gente combinou de monitorar melhor a glicemia capilar, e usar mais corretamente a insulina, e otimizar as doses, e diminuir o intervalo das consultas para acompanhar de perto a evolução da gravidez.
E entre uma consulta e outra, recebi a maior de todas as surpresas, a maior de todas as homenagens que um paciente pode me oferecer. Fui convidado para ser padrinho do bebê. Foi meu presente de Natal antecipado. E se eu já me sentia responsável pela boa condução da gravidez, como seria e serei de todas as minhas pacientes que vierem a engravidar, a responsabilidade dobrou, triplicou, quadruplicou, multiplicou por mil.
Era véspera de Natal e eu me arrumava para a festa quando ela entrou em contato e me perguntou: É normal ter sangramento? Sim, pode acontecer... mas quanto? Muito. Não, muito não é normal, vai rápido para uma UPA ou para uma emergência obstétrica.
O estresse durou umas três ou quatro semanas, entre muitas idas à maternidade, algumas ultrassonografias e testes de bHCG. Sim, ela tinha perdido a gravidez. Eu lamento não ter podido fazer mais. Eu lamento não ter podido fazer o que quer que fosse preciso para a gravidez chegar ao termo. Eu lamento que a mãe e o pai e os avós e os tios e os amigos tenham que ter passado por tudo isso. Eu lamento ter perdido a oportunidade de ser padrinho desse bebê.
O diabetes mellitus não impede que a mulher engravide. Mas quanto mais bem controlado ele estiver, antes e durante a gravidez, mais seguro vai ser, tanto para a gestante quanto para o bebê. E independente de gravidez, quanto mais bem controlado, melhor vai ser a qualidade de vida futura da mulher.

Suspeita de diabetes

Se você acha que a coisa mais fofa do mundo são fotos de gatinhos, de cachorrinhos, são coalas felpudos, são pandas peidando arco-íris, é porque você não conhece a pacientinha que eu atendi hoje de primeira vez.
2 anos e 5 meses.
Em novembro tinha um exame de rotina pediátrica com a glicose normal; só o colesterol um pouco alto para a idade.
Em fevereiro, assintomática, foi à consulta no Posto de Saúde, mediram-lhe a glicemia capilar e estava 220mg%.
O médico orientou os pais a suspenderem qualquer alimento com açúcar e encaminhou para um Endocrinologista pediátrico.
- Oi, lindinha! Em que posso ajudá-la? - perguntei, olhando para a menina. Em geral eu começo a consulta me dirigindo para a criança, para ver até onde ela vai, e depois prossigo com os pais.
- Tchabete. - ela respondeu.
- Diabetes? Quem tem diabetes?
- Eu.
- E o que você já está fazendo pra melhorar?
- Não pode comer açúcar. - com aquela vozinha gostosa de criança recém aprendendo a falar.
Continuava assintomática.
Sem acordar à noite para urinar e sem fazer na cama. Sem perda de peso. Sem excesso de sede.
A glicemia capilar estava 128mg% (no meio da manhã, sem jejum).

domingo, 5 de abril de 2015

História de uma Copa do Mundo pretérita

O ano era 2002. Eu fazia residente de Clínica na Enfermaria 16.
Por causa do fuso horário, os jogos na China e no Japão passavam no Brasil pela manhã. A gente assistia, quando dava, pela televisão de um paciente internado. E lá pelas tantas o tal sujeito teve alta.
Era o dia de um jogo do Brasil.
— Quanto está o jogo?, alguém me perguntou.
— Não sei. Foram dar alta pro paciente com tevê...
O staff ouviu de longe e perguntou assustado:
— Quem deu alta pro paciente com TV??
TV = taquicardia ventricular. Uma arritmia potencialmente fatal.
Um paciente com TV não poderia ter alta, ou correria risco de morrer; nem um paciente com tevê, ou a gente não veria os jogos.

Obras importantes

Ainda estou esperando o dia desse menino se candidatar a prefeito!
J.V.F.S.B.S. (nome grande! E o primeiro S. é de Saavedra, herdeiro de Cervantes), 9 anos, diabético tipo 1 desde os 7.
— Ele gosta de construir coisas, diz a mãe.
— Construir... Como assim?
— Outro dia eu fiz um ônibus, ele me conta.
— Ahn?
— De papelão. E as rodas de tampinha de garrafa pet, e os eixos de cotonete.
Fez navios, veleiros, um trem, um edifício.
— E agora, você vai fazer o quê? O Maracanã?
— Hmmm, não... Um hospital.

Insensibilidade androgênica completa

Certa vez no consultório...
Mulher de 25 anos, 1,87 metro de altura, diagnosticada recentemente com síndrome de insensibilidade completa a androgênios (CAIS). Apesar de ter o cariótipo 46 XY, ela nasceu com genitália feminina, desenvolveu puberdade feminina, e não apresentou menarca - exatamente o quadro da CAIS.
Lá pelas tantas da consulta, ela pergunta:
- Mas... eu sou um homem?
Minha resposta veio sob a forma de outra pergunta:
- Você se sente um homem?
- Não.
- Então você já respondeu.
- Mas... quer dizer que eu sou meio a meio?
- De novo: você se sente meio homem meio mulher?
- Não.
- Então...

Ferropenia

A senhorinha saiu da primeira consulta com um pedido de exames de sangue, e depois de já os ter feito voltou para a revisão.
O hematócrito estava no chão.
- A senhora está tomando ferro, dona M.?
- Ih, doutor... - ela me respondeu, com a cara mais séria do mundo - eu já não tomo ferro há tanto tempo que nem sei!

De como tornar gorgonzola o queijo minas

Pensamentos do sujeito sentado no canteiro da rua Bacairis:
"Que fome!" - já são duas horas e ele ainda não almoçou - Essa quentinha que eu trouxe deve estar uma delícia! Mas... que droga!... Essa coceira na virilha não me larga!" Olhou para um lado, para o outro, procurando alguma coisa que o pudesse aliviar. E encontrou. "Hmmm, que boa ideia essa minha!" Levantou a perna do short, enfiou por ali o garfo com o qual dali a pouco iria comer e se satisfez.
O almoço estava mesmo precisando de um tempero.

domingo, 29 de março de 2015

Empatia médica

Vez ou outra recebo imagens compartilhadas de prescrições ou solicitações de exames que não fazem o menor sentido, em geral feitas por médicos estrangeiros do Programa Mais Médicos, por pessoas que se colocam contra o programa.
Vez ou outra recebo no consultório ou no hospital prescrições e solicitações de exames que não fazem o menor sentido, em geral feitas por médicos brasileiros de unidades públicas ou saúde privada.
Para pedir um exame, para fazer uma prescrição, é necessário (MUITO!) conhecimento científico-médico. Em esferas as mais diversas. Conhecimento anatômico, fisiológico, fisiopatológico, farmacológico, epidemiológico, técnico-laboratorial, técnico-cirúrgico. Entre outros. Entre muitos outros.
Mas as pessoas se esquecem de algo que não é científico e que também é fundamental que um médico tenha. E que alguns por aí não têm. Ética. Empatia.
Vou relatar o caso de um grande amigo meu, a quem não vou identificar, mas que provavelmente vai ler, e se quiser diga um alô; aos amigos em comum, por favor, vocês também vão reconhecer a história, mas só identifiquem se ele quiser, depois que ele o fizer.
Esse meu amigo procurou uma emergência com dor abdominal intensa. Foi atendido e fez prontamente uma tomografia. Segundo o cirurgião que o atendia, era uma apendicite; ele iria para cirurgia e voltaria bem em no máximo uma hora. É uma cirurgia tranquila, vai dar tudo certo.
Uma hora de cirurgia se passou e nada. Duas horas e nada. Quatro horas e nada. Nenhuma informação, nada que explicasse aos amigos e familiares o porquê de uma cirurgia tão tranquila estar demorando tanto. Eu cheguei ao hospital nesse ínterim, a família esperando pelo filho e sobrinho e primo deles, pelo meu amigo, que já devia ter voltado há muito tempo e ninguém dava informação nenhuma. Tentei usar minhas prerrogativas de médico para saber alguma coisa, e nada. Ele já vai voltar, já está acabando. Acabando o quê? Aconteceu alguma coisa, alguma intercorrência? Silêncio. Ninguém sabia de nada.
De repente aparece o cirurgião na sala de espera. Os parentes o reconhecem e se aproximam. Como foi, doutor? Foi tudo muito bem, ele responde, pega a máquina fotográfica, encontra uma foto, dá um zoom máximo, esse é o tumor que eu tirei do seu filho. Agora vocês vão precisar de um oncologista, ele completou, talvez precise de quimio ou radioterapia.
Tumor?! Não era uma apendicite?!
Fui olhar a tomografia feita antes da cirurgia e estava lá o tumor no íleo terminal, e em volta uma série de linfonodos aumentados também acometidos pelo mesmo processo patológico. Já sabiam dele quando foi encaminhado para cirurgia. Já sabiam que não seria uma apendicectomia. Já sabiam que não seria tão rápido. Por que não disseram? Por que deixaram todos apreensivos esperando 4 horas por uma cirurgia que pensavam durar uma hora? E precisava dizer assim?
As possibilidades diagnósticas não eram favoráveis. Linfoma, carcinoma de íleo; na melhor das hipóteses uma tuberculose, que se cura com 6 a 9 meses de esquema antibiótico.
Algumas semanas depois chegou o resultado histopatológico. Nem um, nem outro, nem outro. Uma hipótese melhor que a melhor das hipóteses: uma diverticulite de Meckel, que somente com a cirurgia estava curada.
O cirurgião soube anatomia? epidemiologia das doenças de íleo terminal? fisiopatologia? técnica cirúrgica? Todo o conhecimento médico parece ter sido impecável. Todo? Não, quase todo. Faltou uma coisa que não se aprende em livros: colocar-se no lugar do outro e se perguntar se é assim que você gostaria de receber essa informação, tecnicamente correta, mas humanamente indefensável. Faltou humanidade.

SIMEP 2015

No more chills.
No more pills.
No more thrills.
Just a little bellyache.
Imediatamente antes de a palestra anterior terminar, já pela conclusão e com os apelos da mesa de que o tempo estava esgotado, peguei meu pulso radial e contei os batimentos em 15 segundos. Vinte e oito. Isso dá 112 bpm.
Até que a presidente da mesa Dra. Izabel Calland chamou meu nome e apresentou minhas credenciais e eu me levantei e me dirigi ao palco e entrei em alfa.
Obrigado, à comissão organizadora, em especial à Profa. Isabel Rey Madeira, pelo convite, e para concluir essa tarde bastante proveitosa vamos falar sobre puberdade precoce em neonatos e pré-escolares, antes dos 2 anos de idade.
Foi tão melhor do que eu havia previsto! Como sói acontecer, é verdade. Eu sempre acho que vai ser um desastre, e na hora me saio bem. Não adianta, na próxima vez eu vou continuar achando que vai ser um desastre, e provavelmente não vai ser tão ruim assim. Se o conteúdo estava de acordo com as expectativas dos organizadores e congressistas, bom, isso cabe mais a eles que a mim dizer. Mas falei bem, eu acho.
E se consegui passar o recado do último slide, de que "na grande maioria das vezes, o surgimento de características puberais em lactentes e pré-escolares é a exacerbação da atividade gonadotrófica fisiológica (minipuberdade) mas é fundamental o diagnóstico diferencial com condições patológicas de puberdade precoce central e periférica, que requerem tratamento específico", então estou satisfeito.
Recebi o certificado das mãos da Dra. Deise Arantes e o dia acabou.

Déficit de atenção

Você quer ganhar um par de óculos escuros novinhos?
Por "novinhos" quero dizer com uns seis meses de uso, no máximo.
Faz o seguinte: da próxima vez que eu comprar óculos de sol novos, eu aviso, e você cola nimim igual carrapato. Aonde eu for você vai atrás. De manhã, de tarde, de noite. De noite talvez não precise, porque dificilmente eu vou sair de óculos escuros de noite.
É batata.
Em algum momento desses próximos seis meses eu vou esquecer os óculos em algum lugar. E eles nunca mais vão aparecer.
Então, se você estiver ao meu lado, da primeira vez que eu os deixar fora do alcance dos meus olhos em cima de uma mesa qualquer, você me avisa; da segunda vez, você me avisa; da terceira vez, você tem sido tão legal comigo que da terceira vez eu deixo os óculos com você. Afinal, a essa altura eles já duraram mais tempo do que qualquer outro par doutrora.

Obesidade infantil, parte 2

Em sequência ao causo do mês passado, publicado com o título "Obesidade infantil":
A mocinha voltou hoje.
Em dois meses, já perdeu ao todo 4,15kg.
Não está com fome. Não está desnutrida. Não está inativa. Não está cansada.
Muito pelo contrário, corre o consultório todo e examina a Peppa com o estetoscópio de brinquedo e só reclama mesmo quando tem que parar de brincar para ser examinada.
E até a mãe dorme melhor, porque não tem que acordar a madrugada toda para amamentar (aos 2 anos!).

Síndrome de Charles Bonnet

O primeiro capítulo de "A Mente Assombrada" (Hallucinations), de Oliver Sacks, fala sobre a síndrome de Charles Bonnet, caracterizada pela ocorrência de alucinações visuais em pessoas cegas ou com alguma perda visual importante.
Nunca tinha ouvido falar, mas imagino que seja o equivalente visual à sensação do membro fantasma em pessoas amputadas.
Pois hoje pela primeira vez eu perguntei a uma paciente se acontecia às vezes de ela ver coisas que não estavam ali. Sra. E.T.N. tem retinopatia diabética grave e só enxerga vultos. E me respondeu que sim, o tempo todo, que vê pessoas entrando e saindo, pessoas desconhecidas e mudas (porque a alucinação é apenas visual), e que às vezes leva um susto com a aparição e fica com medo, mas passa. Essas visões têm qualidade visual muito maior que as reais, até porque ela já não vê mais quase nada.
Interessante! Vou passar a prestar mais atenção nisso.

Replicadora nata

Eu tinha que ter visto isso!
Minha pacientinha tinha 13 anos de idade e 2 de diabetes tipo 1. Cursava o 8º ano de uma escola municipal de Jacarepaguá, e na disciplina de Ciências aprendia sobre o corpo humano, os sistemas, os órgãos, os tecidos, as células; e na prova do 3º bimestre cairia o sistema endócrino, com suas glândulas e secreções, entre elas a sua querida insulina.
Ela pensou, pensou, e propôs: e se, em vez de eu fazer a prova, eu der uma aula para a turma sobre diabetes? A professora gostou da ideia. E marcou a data.
No tal dia, foi a mocinha para a escola munida de caneta aplicadora, seringa, glicosímetro, lancetador... e falou sobre o pâncreas produzir insulina, sobre como ela abaixa a glicose, sobre o que acontece quando alguém desenvolve diabetes, sobre como era o seu tratamento, sobre como fazia a aplicação de insulina, sobre como media a glicemia capilar, e não só explicou como fez na frente de todo mundo, colegas de turma, professora, e há quem diga que juntou gente de outras turmas e outros professores e diretora da escola para ver a menina-professora passando adiante o que havia aprendido durante seu acompanhamento.
Eu queria estar lá, não para corrigir, veja, não é bem assim, mas para aplaudir a sua iniciativa e o seu esforço em aprender o que é de fato importante para ela.
Deu um show... mas teve que fazer a prova mesmo assim.
E tirou 10.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Obesidade infantil

Causo de hoje:
Menina de 2 anos 1 mês veio mês passado para consulta de primeira vez, com relato da mãe de estar ganhando peso muito rápido desde o nascimento. Estava pesando 25,7kg.
Na anamnese e no exame físico, nada sugeria alguma síndrome ou algum outro problema além do peso.
Na história alimentar, come bem no almoço e jantar, com legumes, verduras; mingau de Cremogema com açúcar no café da manhã e no lanche da tarde; e do jantar em diante, leite materno sob livre demanda, várias vezes durante a noite e a madrugada.
Minhas orientações:
Tirar o açúcar do mingau e bater o leite com uma fruta para adoçar;
e parar de amamentar à noite - o leite materno poderia no máximo substituir a ceia, mas uma vez só.
Hoje retornou para reavaliação e para trazer os exames solicitados.
Os exames estavam todos normais.
E o peso... o peso baixou para 23,55kg.
Menos 2,15kg em um mês.
Não, eu não fiz mágica. Só usei o bom senso.

Boa tarde!

- Boa tarde, Sr. R.!
- Boa noite!
Eram 6 horas e o sol brilhava alto no céu. A luz do consultório só estava acesa porque a persiana precisava ficar fechada, para não me ofuscar, para ajudar o ar condicionado a dar vazão e para não constranger os pacientes que vão se despir. Por mim eu preferiria a luz natural e a vista da praia da Barra.
- Tudo bem com o senhor? Como tem passado?
- Tudo mal!
Estranho. Ele só tinha hipotireoidismo, e vinha bem controlado até a última consulta. Talvez não tivesse nada a ver com seu problema endócrino. Mas como ele é mais que uma glândula no pescoço e uma caixa de comprimidos de hormônios, quis saber do que se tratava.
- O que houve?
- Tá muito quente! Eu odeio sol! Eu odeio verão! Eu odeio horário de verão!
É, realmente isso eu não posso ajudar, Smurf Ranzinza!

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Lusofonia

Em sua aula de filosofia M. Jourdain se surpreende ao descobrir que vem falando em prosa a vida toda sem saber.
Pois às vezes me parece que, diferente do burguês ridículo de Molière, portugueses falam em poesia sem saber.
Minha pacientinha C.H.V.S., de 80 anos, natural de Viseu, queixou-se que seus olhos estavam ardendo e lacrimejando quando ela via tevê.
- É claro que a senhora chora! Só passa novela triste e jornal de desgraça!
E ela respondeu:
- Não sou eu que choro; os olhos choram por querer chorar.

Daqui a 5 minutos

Acho curioso quando chamo um(a) paciente, e ele(a) está na recepção ao celular, e se despede da sua conversa dizendo "estou entrando na consulta, me liga daqui a 5 minutos."
Sério que você acha que a consulta vai demorar 5 minutos?
Sinto pena.
Pena de ele(a) ter a experiência pretérita de ter sido atendido(a) em 5 minutos.
Pena de dentro de 5 minutos ele(a) ter de atender o telefone e dizer "ainda estou em consulta, deixa que eu te ligo de volta, porque esse médico está fazendo perguntas que ninguém nunca me fez e eu não sei quando vai acabar."

Psicologia médica

O trabalho final da disciplina de Psicologia Médica consistia em fazer entrevistas - e relatórios sobre as entrevistas - com pessoas que tivessem a ver com o módulo em questão. Os módulos diziam respeito às fases da vida de uma pessoa: nascimento, primeira infância, segunda infância, adolescência, idade adulta, envelhecimento e morte. O objetivo era tirar daquela pessoa o conteúdo para entender como ela se sentia ao vivenciar aquela fase de alguma forma no seu dia a dia.
A maioria de nós estava no final da adolescência. Dezoito, dezenove anos, alguns um pouco mais velhos.
O primeiro módulo foi sobre Morte. E fui eu à rua, munido de um gravador, escolher um entrevistado que convivesse com a morte - já que mesmo se eu pudesse entrevistar o próprio morto, duvido que o professor aceitasse. Um policial? Um bombeiro? Um médico de emergência?
Era fim de semana, fazia sol e - coisa que eu não faço com frequência - fui à praia. E pensei se seria uma boa ideia entrevistar um guarda-vidas. Alguém já morreu na sua mão durante um salvamento? Como você lidou com isso? Ele chegou a ir para o hospital ou morreu na praia mesmo? Foi você que deu a notícia para a família? Como você se sentiu?
Fiz a entrevista. Transcrevi a gravação. Fiz meu relatório. Mas não foi legal. Não foi legal ter que chegar para um estranho, me apresentar, perguntar se eu poderia fazer algumas perguntas, fazê-las de fato, enquanto a minha fobia social me dizia e repetia internamente que eu estava sendo ridículo. Ele estava me achando patético, eu tinha certeza, e chegaria em casa e riria às gargalhadas ao contar o que aquele garoto teve a pachorra de perguntar. Fóbico social e paranoico.
E as semanas foram passando, e os módulos foram passando, e aquela experiência me deixou mal para fazer outras entrevistas, e eu estava ficando atrasado com meus relatórios.
No final do semestre eu só tinha uma entrevista feita e relatoriada. E eu a odiava. E e me odiava por ter feito ela daquele jeito. E não tinha tempo de fazer de novo. E nem tinha tempo de fazer as outras entrevistas e os outros relatórios.
E pela primeira vez eu fui reconhecido por uma obra de ficção.
Criei mães falando sobre filhos, professores falando sobre alunos, adultos com sua vida de adulto, idosos e seus medos da morte.
Criei e entrevistei minhas crias.
E tirei 10.