quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Obesidade infantil

Causo de hoje:
Menina de 2 anos 1 mês veio mês passado para consulta de primeira vez, com relato da mãe de estar ganhando peso muito rápido desde o nascimento. Estava pesando 25,7kg.
Na anamnese e no exame físico, nada sugeria alguma síndrome ou algum outro problema além do peso.
Na história alimentar, come bem no almoço e jantar, com legumes, verduras; mingau de Cremogema com açúcar no café da manhã e no lanche da tarde; e do jantar em diante, leite materno sob livre demanda, várias vezes durante a noite e a madrugada.
Minhas orientações:
Tirar o açúcar do mingau e bater o leite com uma fruta para adoçar;
e parar de amamentar à noite - o leite materno poderia no máximo substituir a ceia, mas uma vez só.
Hoje retornou para reavaliação e para trazer os exames solicitados.
Os exames estavam todos normais.
E o peso... o peso baixou para 23,55kg.
Menos 2,15kg em um mês.
Não, eu não fiz mágica. Só usei o bom senso.

Boa tarde!

- Boa tarde, Sr. R.!
- Boa noite!
Eram 6 horas e o sol brilhava alto no céu. A luz do consultório só estava acesa porque a persiana precisava ficar fechada, para não me ofuscar, para ajudar o ar condicionado a dar vazão e para não constranger os pacientes que vão se despir. Por mim eu preferiria a luz natural e a vista da praia da Barra.
- Tudo bem com o senhor? Como tem passado?
- Tudo mal!
Estranho. Ele só tinha hipotireoidismo, e vinha bem controlado até a última consulta. Talvez não tivesse nada a ver com seu problema endócrino. Mas como ele é mais que uma glândula no pescoço e uma caixa de comprimidos de hormônios, quis saber do que se tratava.
- O que houve?
- Tá muito quente! Eu odeio sol! Eu odeio verão! Eu odeio horário de verão!
É, realmente isso eu não posso ajudar, Smurf Ranzinza!

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Lusofonia

Em sua aula de filosofia M. Jourdain se surpreende ao descobrir que vem falando em prosa a vida toda sem saber.
Pois às vezes me parece que, diferente do burguês ridículo de Molière, portugueses falam em poesia sem saber.
Minha pacientinha C.H.V.S., de 80 anos, natural de Viseu, queixou-se que seus olhos estavam ardendo e lacrimejando quando ela via tevê.
- É claro que a senhora chora! Só passa novela triste e jornal de desgraça!
E ela respondeu:
- Não sou eu que choro; os olhos choram por querer chorar.

Daqui a 5 minutos

Acho curioso quando chamo um(a) paciente, e ele(a) está na recepção ao celular, e se despede da sua conversa dizendo "estou entrando na consulta, me liga daqui a 5 minutos."
Sério que você acha que a consulta vai demorar 5 minutos?
Sinto pena.
Pena de ele(a) ter a experiência pretérita de ter sido atendido(a) em 5 minutos.
Pena de dentro de 5 minutos ele(a) ter de atender o telefone e dizer "ainda estou em consulta, deixa que eu te ligo de volta, porque esse médico está fazendo perguntas que ninguém nunca me fez e eu não sei quando vai acabar."

Psicologia médica

O trabalho final da disciplina de Psicologia Médica consistia em fazer entrevistas - e relatórios sobre as entrevistas - com pessoas que tivessem a ver com o módulo em questão. Os módulos diziam respeito às fases da vida de uma pessoa: nascimento, primeira infância, segunda infância, adolescência, idade adulta, envelhecimento e morte. O objetivo era tirar daquela pessoa o conteúdo para entender como ela se sentia ao vivenciar aquela fase de alguma forma no seu dia a dia.
A maioria de nós estava no final da adolescência. Dezoito, dezenove anos, alguns um pouco mais velhos.
O primeiro módulo foi sobre Morte. E fui eu à rua, munido de um gravador, escolher um entrevistado que convivesse com a morte - já que mesmo se eu pudesse entrevistar o próprio morto, duvido que o professor aceitasse. Um policial? Um bombeiro? Um médico de emergência?
Era fim de semana, fazia sol e - coisa que eu não faço com frequência - fui à praia. E pensei se seria uma boa ideia entrevistar um guarda-vidas. Alguém já morreu na sua mão durante um salvamento? Como você lidou com isso? Ele chegou a ir para o hospital ou morreu na praia mesmo? Foi você que deu a notícia para a família? Como você se sentiu?
Fiz a entrevista. Transcrevi a gravação. Fiz meu relatório. Mas não foi legal. Não foi legal ter que chegar para um estranho, me apresentar, perguntar se eu poderia fazer algumas perguntas, fazê-las de fato, enquanto a minha fobia social me dizia e repetia internamente que eu estava sendo ridículo. Ele estava me achando patético, eu tinha certeza, e chegaria em casa e riria às gargalhadas ao contar o que aquele garoto teve a pachorra de perguntar. Fóbico social e paranoico.
E as semanas foram passando, e os módulos foram passando, e aquela experiência me deixou mal para fazer outras entrevistas, e eu estava ficando atrasado com meus relatórios.
No final do semestre eu só tinha uma entrevista feita e relatoriada. E eu a odiava. E e me odiava por ter feito ela daquele jeito. E não tinha tempo de fazer de novo. E nem tinha tempo de fazer as outras entrevistas e os outros relatórios.
E pela primeira vez eu fui reconhecido por uma obra de ficção.
Criei mães falando sobre filhos, professores falando sobre alunos, adultos com sua vida de adulto, idosos e seus medos da morte.
Criei e entrevistei minhas crias.
E tirei 10.

Feliz idade

A felicidade não tem idade, mostrou-me hoje, saltitante de alegria, minha pacientinha de 73 anos.
Em uma festa durante a Copa do Mundo, conheceu um turista americano e os dois conversaram animadamente durante as quatro horas seguintes. Ele voltou para a Flórida e eles continuaram a se comunicar por telefone e pela internet.
Agora está planejando a viagem double-date, com um amigo dele e uma amiga dela, pelos EUA.
- Sabe como é quando você olha para a pessoa e dois segundos depois você já sabe que vai dar certo?

Acredite no paciente, parte 2

Não foi num tempo remoto e nem num lugar distante. Sra. E. foi submetida a um parto cesáreo com 39 semanas de gestação e o pequeno J.H. nasceu bem. A mãe evoluiu com infecção no sítio cirúrgico e ficou na maternidade por mais 9 dias. O pequeno bebê continuou bem e acompanhou de alta a internação da mãe.
Três dias depois de voltarem para casa, começou a perder peso e ficar desidratado, mesmo em aleitamento materno exclusivo sob livre demanda. Voltaram para o hospital.
O primeiro, o segundo, o terceiro diagnóstico da equipe médica foi maus tratos. Desnutrição por ausência de alimentação. Apesar de a mãe afirmar e reafirmar que não, que estava aleitando com bastante frequência até. Foi acionado o serviço social, foi feita notificação de maus tratos. A mãe foi tratada como uma bandida.
Tudo isso para dali a um tempo um pediatra com a cabeça no lugar fazer o diagnóstico de hiperplasia suprarrenal congênita em sua forma perdedora de sal, pedir parecer à Endocrinologia e iniciar tratamento com hidrocortisona e fludrocortisona.
Hoje eles vieram ao meu consultório pela primeira vez. J.H. está com 3 anos e clinicamente está bem. Vamos ver como os exames vão se mostrar. Os pais estão bem orientados, apesar de ainda estarem com medo da doença. Não foi fácil diagnosticar e não é fácil estar bem o tempo todo - e no caso dele, não estar bem pode significar uma internação séria.
Não é fácil, mas dá.
E nós vamos tentar.
E nós vamos conseguir.