domingo, 29 de março de 2015

Empatia médica

Vez ou outra recebo imagens compartilhadas de prescrições ou solicitações de exames que não fazem o menor sentido, em geral feitas por médicos estrangeiros do Programa Mais Médicos, por pessoas que se colocam contra o programa.
Vez ou outra recebo no consultório ou no hospital prescrições e solicitações de exames que não fazem o menor sentido, em geral feitas por médicos brasileiros de unidades públicas ou saúde privada.
Para pedir um exame, para fazer uma prescrição, é necessário (MUITO!) conhecimento científico-médico. Em esferas as mais diversas. Conhecimento anatômico, fisiológico, fisiopatológico, farmacológico, epidemiológico, técnico-laboratorial, técnico-cirúrgico. Entre outros. Entre muitos outros.
Mas as pessoas se esquecem de algo que não é científico e que também é fundamental que um médico tenha. E que alguns por aí não têm. Ética. Empatia.
Vou relatar o caso de um grande amigo meu, a quem não vou identificar, mas que provavelmente vai ler, e se quiser diga um alô; aos amigos em comum, por favor, vocês também vão reconhecer a história, mas só identifiquem se ele quiser, depois que ele o fizer.
Esse meu amigo procurou uma emergência com dor abdominal intensa. Foi atendido e fez prontamente uma tomografia. Segundo o cirurgião que o atendia, era uma apendicite; ele iria para cirurgia e voltaria bem em no máximo uma hora. É uma cirurgia tranquila, vai dar tudo certo.
Uma hora de cirurgia se passou e nada. Duas horas e nada. Quatro horas e nada. Nenhuma informação, nada que explicasse aos amigos e familiares o porquê de uma cirurgia tão tranquila estar demorando tanto. Eu cheguei ao hospital nesse ínterim, a família esperando pelo filho e sobrinho e primo deles, pelo meu amigo, que já devia ter voltado há muito tempo e ninguém dava informação nenhuma. Tentei usar minhas prerrogativas de médico para saber alguma coisa, e nada. Ele já vai voltar, já está acabando. Acabando o quê? Aconteceu alguma coisa, alguma intercorrência? Silêncio. Ninguém sabia de nada.
De repente aparece o cirurgião na sala de espera. Os parentes o reconhecem e se aproximam. Como foi, doutor? Foi tudo muito bem, ele responde, pega a máquina fotográfica, encontra uma foto, dá um zoom máximo, esse é o tumor que eu tirei do seu filho. Agora vocês vão precisar de um oncologista, ele completou, talvez precise de quimio ou radioterapia.
Tumor?! Não era uma apendicite?!
Fui olhar a tomografia feita antes da cirurgia e estava lá o tumor no íleo terminal, e em volta uma série de linfonodos aumentados também acometidos pelo mesmo processo patológico. Já sabiam dele quando foi encaminhado para cirurgia. Já sabiam que não seria uma apendicectomia. Já sabiam que não seria tão rápido. Por que não disseram? Por que deixaram todos apreensivos esperando 4 horas por uma cirurgia que pensavam durar uma hora? E precisava dizer assim?
As possibilidades diagnósticas não eram favoráveis. Linfoma, carcinoma de íleo; na melhor das hipóteses uma tuberculose, que se cura com 6 a 9 meses de esquema antibiótico.
Algumas semanas depois chegou o resultado histopatológico. Nem um, nem outro, nem outro. Uma hipótese melhor que a melhor das hipóteses: uma diverticulite de Meckel, que somente com a cirurgia estava curada.
O cirurgião soube anatomia? epidemiologia das doenças de íleo terminal? fisiopatologia? técnica cirúrgica? Todo o conhecimento médico parece ter sido impecável. Todo? Não, quase todo. Faltou uma coisa que não se aprende em livros: colocar-se no lugar do outro e se perguntar se é assim que você gostaria de receber essa informação, tecnicamente correta, mas humanamente indefensável. Faltou humanidade.

SIMEP 2015

No more chills.
No more pills.
No more thrills.
Just a little bellyache.
Imediatamente antes de a palestra anterior terminar, já pela conclusão e com os apelos da mesa de que o tempo estava esgotado, peguei meu pulso radial e contei os batimentos em 15 segundos. Vinte e oito. Isso dá 112 bpm.
Até que a presidente da mesa Dra. Izabel Calland chamou meu nome e apresentou minhas credenciais e eu me levantei e me dirigi ao palco e entrei em alfa.
Obrigado, à comissão organizadora, em especial à Profa. Isabel Rey Madeira, pelo convite, e para concluir essa tarde bastante proveitosa vamos falar sobre puberdade precoce em neonatos e pré-escolares, antes dos 2 anos de idade.
Foi tão melhor do que eu havia previsto! Como sói acontecer, é verdade. Eu sempre acho que vai ser um desastre, e na hora me saio bem. Não adianta, na próxima vez eu vou continuar achando que vai ser um desastre, e provavelmente não vai ser tão ruim assim. Se o conteúdo estava de acordo com as expectativas dos organizadores e congressistas, bom, isso cabe mais a eles que a mim dizer. Mas falei bem, eu acho.
E se consegui passar o recado do último slide, de que "na grande maioria das vezes, o surgimento de características puberais em lactentes e pré-escolares é a exacerbação da atividade gonadotrófica fisiológica (minipuberdade) mas é fundamental o diagnóstico diferencial com condições patológicas de puberdade precoce central e periférica, que requerem tratamento específico", então estou satisfeito.
Recebi o certificado das mãos da Dra. Deise Arantes e o dia acabou.

Déficit de atenção

Você quer ganhar um par de óculos escuros novinhos?
Por "novinhos" quero dizer com uns seis meses de uso, no máximo.
Faz o seguinte: da próxima vez que eu comprar óculos de sol novos, eu aviso, e você cola nimim igual carrapato. Aonde eu for você vai atrás. De manhã, de tarde, de noite. De noite talvez não precise, porque dificilmente eu vou sair de óculos escuros de noite.
É batata.
Em algum momento desses próximos seis meses eu vou esquecer os óculos em algum lugar. E eles nunca mais vão aparecer.
Então, se você estiver ao meu lado, da primeira vez que eu os deixar fora do alcance dos meus olhos em cima de uma mesa qualquer, você me avisa; da segunda vez, você me avisa; da terceira vez, você tem sido tão legal comigo que da terceira vez eu deixo os óculos com você. Afinal, a essa altura eles já duraram mais tempo do que qualquer outro par doutrora.

Obesidade infantil, parte 2

Em sequência ao causo do mês passado, publicado com o título "Obesidade infantil":
A mocinha voltou hoje.
Em dois meses, já perdeu ao todo 4,15kg.
Não está com fome. Não está desnutrida. Não está inativa. Não está cansada.
Muito pelo contrário, corre o consultório todo e examina a Peppa com o estetoscópio de brinquedo e só reclama mesmo quando tem que parar de brincar para ser examinada.
E até a mãe dorme melhor, porque não tem que acordar a madrugada toda para amamentar (aos 2 anos!).

Síndrome de Charles Bonnet

O primeiro capítulo de "A Mente Assombrada" (Hallucinations), de Oliver Sacks, fala sobre a síndrome de Charles Bonnet, caracterizada pela ocorrência de alucinações visuais em pessoas cegas ou com alguma perda visual importante.
Nunca tinha ouvido falar, mas imagino que seja o equivalente visual à sensação do membro fantasma em pessoas amputadas.
Pois hoje pela primeira vez eu perguntei a uma paciente se acontecia às vezes de ela ver coisas que não estavam ali. Sra. E.T.N. tem retinopatia diabética grave e só enxerga vultos. E me respondeu que sim, o tempo todo, que vê pessoas entrando e saindo, pessoas desconhecidas e mudas (porque a alucinação é apenas visual), e que às vezes leva um susto com a aparição e fica com medo, mas passa. Essas visões têm qualidade visual muito maior que as reais, até porque ela já não vê mais quase nada.
Interessante! Vou passar a prestar mais atenção nisso.

Replicadora nata

Eu tinha que ter visto isso!
Minha pacientinha tinha 13 anos de idade e 2 de diabetes tipo 1. Cursava o 8º ano de uma escola municipal de Jacarepaguá, e na disciplina de Ciências aprendia sobre o corpo humano, os sistemas, os órgãos, os tecidos, as células; e na prova do 3º bimestre cairia o sistema endócrino, com suas glândulas e secreções, entre elas a sua querida insulina.
Ela pensou, pensou, e propôs: e se, em vez de eu fazer a prova, eu der uma aula para a turma sobre diabetes? A professora gostou da ideia. E marcou a data.
No tal dia, foi a mocinha para a escola munida de caneta aplicadora, seringa, glicosímetro, lancetador... e falou sobre o pâncreas produzir insulina, sobre como ela abaixa a glicose, sobre o que acontece quando alguém desenvolve diabetes, sobre como era o seu tratamento, sobre como fazia a aplicação de insulina, sobre como media a glicemia capilar, e não só explicou como fez na frente de todo mundo, colegas de turma, professora, e há quem diga que juntou gente de outras turmas e outros professores e diretora da escola para ver a menina-professora passando adiante o que havia aprendido durante seu acompanhamento.
Eu queria estar lá, não para corrigir, veja, não é bem assim, mas para aplaudir a sua iniciativa e o seu esforço em aprender o que é de fato importante para ela.
Deu um show... mas teve que fazer a prova mesmo assim.
E tirou 10.