domingo, 30 de agosto de 2015

X-Man

Em Medicina aprendemos a tentar encaixar todos os sinais e sintomas de uma apresentação clínica em um mesmo diagnóstico. Ou em diagnósticos que tenham alguma afinidade fisiopatológica entre si, como diabetes tipo 2 e hipertensão arterial; ou diabetes tipo 1 e hipotireoidismo.

Afinal, qual a probabilidade de uma pessoa desenvolver ao mesmo tempo duas doenças diferentes ao mesmo tempo?
Mais ainda: qual a probabilidade de uma pessoa herdar duas doenças genéticas raras e não relacionadas?

Imagine uma doença genética por mutação esporádica com incidência de 1 caso por 150.000 nascimentos vivos.
A doença provoca ausência de desenvolvimento de células vermelhas do sangue ao nascimento, levando a anemia profunda.

Imagine uma doença genética de herança autossômica dominante com incidência de menos de 1 caso por milhão de nascimentos vivos, descrita em múltiplos membros de 10 famílias no mundo todo.
A doença provoca crises convulsivas neonatais a partir de 1 semana e até 1 ano de idade.

Imagine-se, então, antes dos diagnósticos.
O pediatra está diante de uma criança com 1 mês de vida, com anemia progressiva desde o nascimento e que começa a apresentar crises convulsivas.
O irmão mais velho também tivera crises convulsivas neonatais 2 anos antes, o que facilita pensar em uma doença genética. Mas como encaixar a anemia?

*  *  *

Esse paciente não é do consultório.
É meu irmão.
O tal irmão dois anos mais velho sou eu.
Depois disso, ainda tivemos uma irmã, e mais recentemente meu irmão teve um filho, todos com as mesmas convulsões.
Meu pai é engenheiro, eu sou médico, meu irmão é professor de Português em vias de concluir o mestrado, minha irmã é bióloga, e meu sobrinho é a criança de 7 anos mais esperta do mundo. Ninguém teve sequelas das crises convulsivas e nem tornou a tê-las depois de concluído o tratamento com a idade de 2 anos.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

O retrato da felicidade

D. Maria é natural de Coronel Fabriciano, no interior de Minas Gerais, a 10h de viagem do Rio de Janeiro. Hoje D. Maria tem 66 anos. Mudou-se para o Rio há 46 anos e nunca mais ouviu falar da família. Não faz ideia de se os pais são vivos, os irmãos, tios, sobrinhos... Nunca se casou e não tem filhos. Há 7 anos ficou cega por causa do diabetes e mora em um asilo de religiosas em Jacarepaguá. Todo dia de consulta uma irmã a leva para o hospital com as receitas e as medidas de glicemia capilar feitas 3 vezes por dia.
Desde que eu conheço D. Maria eu brinco que vou mandar uma carta pro Luciano Huck contando a história dela pra ela se reencontrar com a família e aparecer na tevê.
Hoje ela chegou com um sorriso de orelha a orelha.
- Você não vai acreditar!
- O que foi?
- Eu conversei com a minha família.
E me narrou.
Uma irmã entrou em contato com o município e contou a história. Uma rádio local reproduziu e conclamou que se alguém achasse a história de D. Maria familiar, que entrasse em contato com o número tal no Rio de Janeiro.
E um dia, sem saber de nada, recebeu uma ligação da irmã.
- E como a senhora se sentiu ao falar com a sua irmã depois de tanto tempo?
Ela não respondeu. Aliás... respondeu sim... com lágrimas em vez palavras. Melhor resposta não há.
- Eu nem sabia se ainda tinha alguém vivo! São três irmãs e um irmão, e vinte e sete sobrinhos. Até minha mãe está viva!
- A senhora falou com ela?
- Ainda não...
- É bom ter um cardiologista do lado, hein... pra se ela enfartar com a notícia.
Eu chorei junto.
Ela não viu. Mas deve ter percebido.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Paciente (quase) médica

Outro dia uma pacientinha de 7 anos do consultório me deixou preocupado. Comigo mesmo.
Eu a examinei e não tinha nada demais. A família se preocupava com a baixa estatura, mas estava dentro do padrão genético familiar. Medi, pesei, auscultei, medi pressão, examinei abdômen, genitália e nada.
Tirei o estetoscópio do pescoço e perguntei se ela queria ouvir seu coração. Ela aceitou. E ficou entusiasmada com o que ouviu, tanto que ficou repetindo tum ta tum ta no mesmo ritmo.
Com as olivas ainda no ouvido dela, peguei a outra ponta e coloquei no meu coração.
- É igual? - perguntei.
- Não! - respondeu rindo.
- Não??! Qual a diferença? Será que meu coração parou e eu sou um fantasma?
- Não! O seu é mais rápido!
Ao final da consulta tomei meu pulso radial e contei 100 batimentos em um minuto. Minha doutora tinha razão.