quinta-feira, 14 de abril de 2016

Convulsão neonatal familiar benigna

Em primeiro lugar, calma! Está tudo bem! Vai dar tudo certo!

Hoje à tarde eu iria para São Paulo para um simpósio sobre diabetes mellitus tipo 1 promovido pelo Lilly Diabetes Institute.
Iria.

 De malas feitas, de ambulatório remarcado, estava atendendo no consultório quando recebo uma ligação de casa.


Flavio, volta pra casa, Letícia teve uma convulsão.

É o batismo dos Souza. A tal convulsão neonatal familiar benigna que tivemos meu pai, eu, meu irmão, minha irmã e meu sobrinho. A mutação no gene KCNQ2, no cromossomo 20q13.3, responsável por codificar o canal de potássio voltagem-sensível na membrana neuronal.

Não deixa sequelas, não aumenta o risco de crises convulsivas mais tarde; mas até os 2 anos tem que ficar tratando. Como o período pico de incidência da primeira crise convulsiva é entre o 5° e 18° dia de vida, pensávamos que o risco já tinha passado.

Até que hoje, no 118° dia de vida, a 4 dias de completar 4 meses, aconteceu. Voltou do passeio matinal com mamãe e começou a sacudir o esqueleto.

Não vou mais viajar. Vou ficar com bebezinha que precisa do papai.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Ch-ch-ch-changes (turn and face the strain)

Essa história começa muitos anos antes de eu nascer.

Dr. Oacyr Pinto tinha estudado Medicina na turma do meu tio-avô Chrispim Lima, era pediatra do Hospital Jesus e foi um dos fundadores da Pediatria do Hospital Cardoso Fontes. Foi um dos maiores especialistas em poliomielite na época em que a doença acometia e sequelava uma grande quantidade de crianças.

Minha mãe e meu pai tiveram dois filhinhos e depois se separaram (como no "Com quem será" dos aniversários). Tio Oacyr era nosso pediatra.


Desde que a memória alcança, minha mãe morava em Jacarepaguá e meu pai no Grajaú. A Estrada Grajaú-Jacarepaguá era, portanto, o caminho óbvio entre um e outro. E o Hospital Cardoso Fontes era um ponto de referência importante nas idas e vindas. Um hospital! No meio da floresta! Onde trabalha meu médico! Um dia eu vou trabalhar aqui.

O tempo passou, aquele menino cresceu, tornou-se médico. E um dia, formado, com especialidade em Endocrinologia e Endócrino-Pediatria, como que lhe batendo à porta apareceu a oportunidade de trabalhar no Hospital Cardoso Fontes. O hospital vinha de passar de gestão municipal para federal e os funcionários municipais estavam sendo transferidos, incluindo uma endocrinologista. Para o ambulatório não ficar desguarnecido, abriram uma vaga por contrato temporário com o Ministério da Saúde.

De repente eu me vi cumprindo o que dizia quando criança. Estava trabalhando no Hospital Cardoso Fontes. E inaugurei o ambulatório de Endocrinologia Pediátrica, me metendo na mesma Pediatria onde um dia tinha trabalhado meu pediatra. O contrato que era para ser temporário se consolidou através de duas aprovações em concursos públicos para o Ministério da Saúde.

O trabalho que venho realizando desde então nos ambulatórios de Endocrinologia e Endocrinologia Pediátrica nesses 10 anos de dedicação ao Hospital Cardoso Fontes parece estar sendo reconhecido. Não fosse por isso, eu não teria sido convidado pelo nosso Diretor Geral, Dr. Paulo Marçal, a ocupar a Direção Assistencial no lugar da querida Dra. Ilda Dias.

Só pude aceitar o convite com a garantia de que os ambulatórios sejam guarnecidos de profissionais competentes que possam dar continuidade ao trabalho que eu comecei. É o que eu venho dizendo: não posso assumir um cargo de confiança perdendo a confiança dos meus pacientes.

Espero que aceitando esse desafio eu possa ajudar a fazer no atacado o que até aqui fiz no varejo: melhorar os indicadores de saúde dos nossos pacientes. Espero estar à altura do que se espera de mim nessa nova empreitada.

Obrigado a todos que me ajudaram a chegar até aqui. Obrigado aos que vão continuar me ajudando a partir daqui.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Entre o açúcar e a pólvora - parte II

O paciente que devia dinheiro à milícia faltou à consulta semana passada. Não que ele seja um paciente tão assíduo. Não que outras pessoas não tenham faltado. Mas quando existe um motivo pra se pensar o pior...

Pegaram meu neto!

Chamo a paciente, uma senhora na década dos 70, de quem já acompanho o diabetes tipo 2 há muito tempo. Ela entra todo sorridente.

 - Doutor, tudo bem? Como vai a Letícia - é Letícia mesmo, não é?


Confirmo que sim, é Letícia, e que ela vai bem. Ligo o celular e mostro algumas das fotos mais novas, e ouço - como ela é linda!, como é grande! (ela não é grande, mas não se tem muita noção de escala nas fotografias), que sorriso esperto!, quanto cabelo!, parece o senhor, doutor Flavio!

Apesar do paradoxo, incompatíveis o ser linda e o parecer comigo - uma versão melhorada, talvez -, agradeço e sigo a consulta.

- E a senhora, como vai?

Choro convulsivo. Tentou falar alguma coisa e eu não entendi, misturadas as palavras com lágrimas e soluços.

- O que houve?
- Pegaram o meu neto, doutor. A milícia pegou meu neto. Tem 20 dias que ele sumiu. Ninguém sabe dele. Não vai mais voltar.

Tinha (ou tem, no presente; os desaparecidos da ditadura militar demoraram mais de 30 anos para serem reconhecidos como mortos) 16 anos. Ficou até tarde jogando videogame na casa de um amigo, e quando voltou para casa, a menos de 100 metros de distância, já estava em vigor o toque de recolher. Ninguém circula pelas ruas depois de tantas horas. Ou a carrocinha pega. No caso, a carrocinha dos puxa-sacos dos milicianos. Um amigo estava com ele e conseguiu correr. Não fosse por ele, ninguém saberia do menino. Hoje esse amigo está fugido, escondido nalgum lugar, jurado de morte.

Pudera que sua glicose estivesse alta...!

sexta-feira, 8 de abril de 2016

E nem era cubano...

Prescrevo Nesina 25mg (alogliptina, inibidor de DPP4) para um paciente diabético tipo 2.
Ele vai ao posto de saúde e o médico diz - esse aqui é a mesma coisa! - e lhe dá uma caixa de Levozine (levomepromazina, neuroléptico).

Doutor, eu usei dois dias, fiquei meio grogue, meio chapado, daí parei. Fiz mal?

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Síndrome de Bernhardt-Roth

Síndrome de Bernhardt-Roth.
Ou meralgia parestésica.

Imagine que você levou uma anestesia de dentista na face lateral da coxa. Você toca e não sente nada. Você se espeta com uma agulha e não sente nada. Você bota gelo e não sente nada. Nada ou muito pouco, quase nada.

Imagine que você dormiu e sua face lateral da coxa ficou exposta ao sol. Você acorda e sente a ardência, a dor da queimadura.
Imagine que você não tomou anestesia nem se expôs ao sol. E ainda assim você acorda sem sentir o tato na face lateral da coxa, ao mesmo tempo em que sente a maldita dor em queimação.

Por um instante achei que estava ficando maluco. Num segundo momento, mais lúcido, julguei que se tratasse de algum problema neurológico periférico. Acertei. Expliquei o que sentia para um colega neurologista e ele - olha, é importante que eu te examine, mas pelo que você está me contando a principal suspeita diagnóstica é de meralgia parestésica. Fui procurar mais sobre isso e me espantei. Não imaginava que a descrição da síndrome fosse tão perfeitamente igual ao que eu vinha sentindo.

Resta saber por quê.