domingo, 3 de maio de 2015

Ginástica encolhe? Natação faz crescer?

Caros amigos endocrinologistas pediátricos, vocês acham possível abstrair de toda a teoria e assistir a uma competição de ginástica artística sem se questionar como será o cariótipo daquela menina, qual será a estatura de seus pais, quando fez sua última idade óssea e qual era sua previsão de estatura final pelo método de Bayley-Pinneau? Ela é Tanner M1 como a falta de abaulamento torácico sob o collant sugere?
Flavia Saraiva foi medalhista de ouro no solo e prata na trave na etapa brasileira da Copa do Mundo de ginástica artística, no estádio do Ibirapuera, em São Paulo. Demonstra precisão impressionante nos movimentos acrobáticos e graciosidade na dança. Mas o que mais me impressiona é que, aos 15 anos e 7 meses de idade, tem 133cm de altura e 31kg. Não que os saltos duplos, triplos, twists, grupados, carpados não impressionem; mas, cara, ela é muito pequena! Para o gráfico de crescimento, certamente; mas inclusive ao lado de outras atletas da mesma competição. Se tivesse um gráfico de crescimento de ginastas, ainda assim imagino que ela estaria com baixa estatura.
Dizem que a prática de ginástica artística na infância e adolescência diminui a expectativa de crescimento das crianças. É uma pergunta frequente dos pais. Assim como o contrário, que esportes como basquete e natação fazem crescer mais.
Não é verdade.
Georgopoulos e colaboradores publicaram em 2011 um estudo de corte transversal mostrando que a estatura final de atletas de ginástica artística era dentro da expectativa genética. Um estudo colaborativo entre EUA, Canadá, Reino Unido, Bélgica e Austrália chegou à mesma conclusão (Malina et al, 2013).
O que acontece é que na infância todas as crianças podem fazer qualquer atividade física. Em uma mesma aula de ginástica artística ou de natação você pode encontrar crianças altas, baixas, magras, gordas, de todo jeito. Mas aqueles que vão se tornar as nossas referências, os atletas de ponta, são os que mais se destacarem na atividade; os que tiverem o biotipo mais adequado para realizar aqueles movimentos. Um nadador alto leva vantagem sobre o baixo; a ginasta baixa leva vantagem sobre a alta.
O que não impede que algumas tenham algum problema de crescimento de fato, como é o caso da ginasta americana Melissa Anne Marlowe, portadora de síndrome de Turner que competiu nas Olimpíadas de 1988 em Seul.

Menino ou menina?

Quinta-feira à tarde. Chego ao ambulatório do Hospital Cardoso Fontes e meu primeiro paciente é uma consulta de primeira vez vinda de São Pedro d'Aldeia, município da Região dos Lagos fluminense. A ficha diz L., um nome do sexo feminino, e a primeira coisa que os pais me dizem ao entrar é que agora se chama R., nome do sexo masculino. Que eles estão usando todos os recursos judiciários para mudança civil do nome de registro.
Ok, R., então. Um menino.
Durante quase toda a gravidez as ultra-sonografias obstétricas diziam ser uma menina. No oitavo mês, no entanto, o médico viu alguma coisa que mudou a sua opinião.
Ao nascer, três meses atrás, os pediatras da sala de parto reconheceram a genitália ambígua, mas designaram o sexo de nascimento feminino no registro civil, solicitaram um cariótipo e encaminharam a assim chamada recém-nascida para investigação endócrina.
O cariótipo ficou pronto antes da consulta. Os pais leram o resultado: 46, XY. E procuraram na internet o que aquilo queria dizer. E de repente tudo que era rosa virou azul, tudo que era barbie virou carrinho, tudo que era para a L. virou para o R. A cabeça deles estava uma bagunça; e a cabeça da irmã de 10 anos, uma bagunça um pouco maior.
Menina ou menino, afinal?
Até 6 a 7 semanas de gestação, o embrião apresenta gônadas indiferenciadas, primórdios dos dutos genitais internos masculinos e femininos (de Wolff e de Müller, respectivamente) e rudimentos genitais externos (tubérculo genital, pregas genitais, eminências lábio-escrotais e seio urogenital).
A presença do cromossomo Y, em especial do gene SRY, estimula diferenciação das gônadas em testículos; e os hormônios testiculares testosterona e hormônio anti-mülleriano promovem masculinização da genitália interna (desenvolvimento dos dutos de Wolff em epidídimos e dutos deferentes; e regressão dos dutos de Müller) e virilização da genitália externa (tubérculo genital em glande; pregas genitais em corpo do pênis; e eminências lábio-escrotais em bolsa escrotal).
A ausência do gene SRY faz com que as gônadas se diferenciem em ovários a partir da 10ª semana de gestação. A ausência de testosterona e hormônio anti-mülleriano promovem feminilização da genitália interna (desenvolvimento dos dutos de Müller em trompas, útero e 1/3 distal da vagina; e regressão dos dutos de Wolff) e da genitália externa (tubérculo genital em clitóris; pregas genitais em pequenos lábios; e eminências lábio-escrotais em grandes lábios).
Uma série de mutações genéticas podem provocar alteração na produção ou sensibilidade aos hormônios responsáveis pela diferenciação sexual, e portanto excesso de virilização em indivíduos XX ou o oposto, virilização insuficiente em indivíduos XY.
Em alguns casos, o(a) recém-nascido(a) já nasce com algum grau de ambiguidade genital. Isso quer dizer que a genitália externa não é tipicamente masculina ou feminina. Isso pode - e deve! - ser identificado já na sala de parto, e indica urgência em identificar a causa. Durante esse período, pode-se pedir adiamento do registro civil até que se tenha um diagnóstico.
Voltando ao caso em questão, o exame físico confirmou a ambiguidade genital. O falo tinha característica peniana, mas com tamanho pequeno e abertura da uretra no períneo (hipospádia); as eminências lábio-escrotais apresentavam abertura anterior e fusão posterior; à direita uma gônada podia ser palpada em posição escrotal, e à esquerda em posição inguinal.
Sim, tratava-se de uma genitália ambígua. Mas, diferente do gênero designado na sala de parto, tinha muito mais características masculinas que femininas. Ok, pode-se dizer que eu tenha sido influenciado por já saber o resultado do cariótipo; mas não, ter gônadas palpáveis sugere fortemente o sexo masculino. Ainda assim, independente do que eu achasse ou deixasse de achar, o mais correto é adiar a designação de gênero até que se tenha um diagnóstico.
O mais recompensador de tudo, no entanto, aconteceu ao fim da consulta. Não é uma situação fácil para os pais; aliás, muito pelo contrário, costuma ser bastante complicado. Durante a gestação, os pais escolhem nome, e criam expectativas, e decoram o quarto, e compram roupas, e contam para todo mundo... para de repente mudar tudo e o que era a L. vira o R.
- Você já acompanhou alguém assim? - me perguntou a mãe.
- Olha, não é uma condição assim tão comum, mas sim, eu já acompanhei alguns casos.
- Você não tem ideia...
- Ideia eu tenho. Não é fácil mesmo! Uns lidam melhor, outros lidam pior. E pelo que eu estou vendo até aqui, até que vocês estão lidando muito bem com essa situação.
- Você não tem ideia de como você tranquilizou a gente!
Bom... eu tento!

Amor materno maior que tudo

Acompanho E.S.D.S. desde os 14 anos de idade, 3 anos depois de ela se descobrir diabética tipo 1. Aos 21 anos, casada, espera seu primeiro filho. Eu a enchi de parabéns quando soube, apesar de ela própria achar que era cedo. O controle glicêmico estava muito ruim, com a HbA1c de 12,0% no último exame pré-gestacional.
Eu propus: a partir daqui vamos nos ver todos os meses, você vai usar rigorosamente todas as doses de insulina [ela se recusava a levar a insulina para o trabalho, por vergonha de os outros saberem de sua condição], e você vai medir sua glicemia antes e 2h depois de café, almoço e jantar.
Hoje ela está com 31 semanas e me levou as anotações de glicemia capilar do último mês.
A HbA1c já baixou para 8,1%, o que não é exatamente ideal, mas é incomparavelmente melhor do que ela vinha apresentando.
As médias de glicemia capilar estão (antes/depois): no café 65/83; no almoço 109/134; e no jantar 94/149, com doses cada vez menores de insulina [porque agora está efetivamente usando].
A barriguinha de grávida está lindinha e a bebezinha agradece. Seu meio-ambiente está muito mais saudável desse jeito, permitindo que ela cresça e se desenvolva melhor.
Só espero que tenha servido de lição que o controle glicêmico adequado é possível, e que continue assim depois que essa fase passar.

Poesia do dia a dia

E da série Poesia do dia a dia, de alguém que não se sabe poeta, mas descreve sua condição como um legítimo.
E.Y.U., 75 anos, boliviano radicado no Brasil há quase 60 anos.
Diabético tipo 2, algumas consultas atrás me confidenciou ter perdido agudamente a visão do olho direito. "Só enxergo contraste de preto e branco." Mostrei uma folha de marcação de consulta e perguntei se ele lia. "Vejo uma faixa preta [onde estava escrito o título, com letras maiores]".
Encaminhei para a Oftalmologia, e hoje ele voltou operado.
- Era uma catarata muito grossa! Doutor, na última consulta o senhor falou: "quero que o senhor volte me enxergando bem". Eu nunca enxerguei tão bem. As cores... Parece que pintaram o mundo!

O caso do guerrilheiro

Não é só de crianças fofinhas que meus dias no Hospital Cardoso Fontes são recheados.
E.O.S., sexo masculino, 75 anos. Vem à consulta acompanhado pela filha. Comenta:
- Eu nasci durante a guerra, doutor! [em 1940, referindo-se à II Guerra Mundial]
- Eu também, Sr. E. Durante a guerra contra a ditadura militar.
- Sabe, doutor... eu fui preso político durante a ditadura.
- Sério, Sr. E.? Me conta! Como foi isso?
- Eu era um dos líderes dos Grupos dos Onze, junto com o Brizola. A gente estava se preparando para pegar em armas contra o golpe quando eu fui preso.
- Pai! Você nunca me contou isso! - surpreendeu-se a filha - Pegar em armas? Você ia matar alguém? Quem, o presidente? Os governantes?
- Eu fui o único do meu grupo a ser preso. Fiquei mais ou menos uma semana. Não passei ninguém.
Fiquei impressionado com a filha não saber da história pessoal do pai. Ok, ele ainda era solteiro e ela ainda não tinha nascido. Mas ser filha de alguém sobre que os livros de História deveriam falar e descobrir assim, em uma consulta ao médico, tantos anos depois, é de cortar o coração.

Gestação em diabetes

Los Hermanos cantam:
"Quem sabe o que é ter e perder alguém..."
Taí uma coisa que eu contei pra pouca gente, mas que de vez em quando eu lembro e fico feliz e fico triste e nem sei bem o que pensar.
Em algum momento perto do fim do ano passado uma paciente minha do Hospital Cardoso Fontes me disse estar grávida.
Eu a acompanho desde os 11 anos, enquanto estava só acima do peso e com exames de glicose e lipídios alterados, e eu a avisava que corria risco de ficar diabética. Algum tempo depois ela de fato desenvolveu diabetes mellitus tipo 2, e a gente começou a tratar, primeiro com medicações orais, depois em associação com insulina. Se não me engano, dos meus pacientes é até hoje a mais nova a desenvolver diabetes tipo 2.
E lá se vão oito anos.
Ela tinha 19 anos quando me avisou da gravidez. Ainda tem. O diabetes estava longe do bom controle, e a gente combinou de monitorar melhor a glicemia capilar, e usar mais corretamente a insulina, e otimizar as doses, e diminuir o intervalo das consultas para acompanhar de perto a evolução da gravidez.
E entre uma consulta e outra, recebi a maior de todas as surpresas, a maior de todas as homenagens que um paciente pode me oferecer. Fui convidado para ser padrinho do bebê. Foi meu presente de Natal antecipado. E se eu já me sentia responsável pela boa condução da gravidez, como seria e serei de todas as minhas pacientes que vierem a engravidar, a responsabilidade dobrou, triplicou, quadruplicou, multiplicou por mil.
Era véspera de Natal e eu me arrumava para a festa quando ela entrou em contato e me perguntou: É normal ter sangramento? Sim, pode acontecer... mas quanto? Muito. Não, muito não é normal, vai rápido para uma UPA ou para uma emergência obstétrica.
O estresse durou umas três ou quatro semanas, entre muitas idas à maternidade, algumas ultrassonografias e testes de bHCG. Sim, ela tinha perdido a gravidez. Eu lamento não ter podido fazer mais. Eu lamento não ter podido fazer o que quer que fosse preciso para a gravidez chegar ao termo. Eu lamento que a mãe e o pai e os avós e os tios e os amigos tenham que ter passado por tudo isso. Eu lamento ter perdido a oportunidade de ser padrinho desse bebê.
O diabetes mellitus não impede que a mulher engravide. Mas quanto mais bem controlado ele estiver, antes e durante a gravidez, mais seguro vai ser, tanto para a gestante quanto para o bebê. E independente de gravidez, quanto mais bem controlado, melhor vai ser a qualidade de vida futura da mulher.

Suspeita de diabetes

Se você acha que a coisa mais fofa do mundo são fotos de gatinhos, de cachorrinhos, são coalas felpudos, são pandas peidando arco-íris, é porque você não conhece a pacientinha que eu atendi hoje de primeira vez.
2 anos e 5 meses.
Em novembro tinha um exame de rotina pediátrica com a glicose normal; só o colesterol um pouco alto para a idade.
Em fevereiro, assintomática, foi à consulta no Posto de Saúde, mediram-lhe a glicemia capilar e estava 220mg%.
O médico orientou os pais a suspenderem qualquer alimento com açúcar e encaminhou para um Endocrinologista pediátrico.
- Oi, lindinha! Em que posso ajudá-la? - perguntei, olhando para a menina. Em geral eu começo a consulta me dirigindo para a criança, para ver até onde ela vai, e depois prossigo com os pais.
- Tchabete. - ela respondeu.
- Diabetes? Quem tem diabetes?
- Eu.
- E o que você já está fazendo pra melhorar?
- Não pode comer açúcar. - com aquela vozinha gostosa de criança recém aprendendo a falar.
Continuava assintomática.
Sem acordar à noite para urinar e sem fazer na cama. Sem perda de peso. Sem excesso de sede.
A glicemia capilar estava 128mg% (no meio da manhã, sem jejum).