segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Procurando L.

O guarda-chuva em vão tentou me proteger, mas com o tempo as pernas começaram a se encharcar. Chovia, e parava, e chovia, e parava, enquanto eu procurava a casa 29 em uma rua cujos números subiam e desciam aleatoriamente como bolinhas cantadas pelo mestre de cerimônias do bingo, pares e ímpares tanto à esquerda quanto à direita.

Por duas semanas tentamos entrar em contato com a paciente. Sem sucesso. O número de telefone no prontuário dela, e no da irmã, e no da avó, todos incomunicáveis. Peguei o endereço e fui.

Uma das minhas primeiras pacientes no Hospital Cardoso Fontes - e já se vão oito anos! -, 23 anos, portadora de diabetes mellitus tipo 1, recentemente se internou com um quadro de obstrução intestinal. Foi submetida a cirurgia de emergência e ficou bem. Mas o exame histopatológico revelou... câncer. E depois de sair o resultado ninguém conseguiu mais falar com ela.

Primeiro eu encontrei o número da casa.
Sua mãe me viu à porta, disse que ela estava em casa e me convidou para entrar.
- Aconteceu alguma coisa?
Ela sabia que tinha acontecido. Era muito estranho ela me encontrar ali, àquela hora, naquela chuva.
- É melhor a gente conversar todo mundo junto.
Entramos.

Eu podia ter dito apenas que a Cirurgia Geral queria lhe falar, que estavam tentando ansiosamente se comunicar com ela, que ela fosse ao ambulatório saber o que era. Mas eu odiaria se isso fosse feito comigo, me fazer passar a noite em claro pensando em tudo o que eles poderiam querer comigo com tanta urgência, do pior ao pior ainda. Então resolvi tirar o esparadrapo de uma vez.

- A biópsia da sua cirurgia ficou pronta e...
- E...
- E a Cirurgia Geral precisa muito falar com você, porque...
- Porque...
- Porque o laudo diz que você tem um câncer.

Eu não sei qual a melhor maneira de se dizer que alguém tem um câncer. A maneira mais fácil é não ligar para a pessoa; dizer, virar a cara e ir embora, o problema é dela e eu não tenho mais nada com isso. Mas isso eu não sei fazer.

Estávamos sentados no sofá da sua sala, e sua mãe na cadeira adiante. Eu segurei sua mão quando ela começou a chorar - Estou com medo! -, passei o outro braço pelo seu ombro e respondi - A gente vai fazer o que for e o que não for possível para ficar tudo bem.

Fiquei mais um tempo consolando e explicando o que precisaria ser feito dali para frente, repassei a história quando o marido chegou, e depois para a avó, e quando fui embora ainda chovia.
Mas o guarda-chuva não protege das lágrimas.

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