domingo, 3 de maio de 2015

Menino ou menina?

Quinta-feira à tarde. Chego ao ambulatório do Hospital Cardoso Fontes e meu primeiro paciente é uma consulta de primeira vez vinda de São Pedro d'Aldeia, município da Região dos Lagos fluminense. A ficha diz L., um nome do sexo feminino, e a primeira coisa que os pais me dizem ao entrar é que agora se chama R., nome do sexo masculino. Que eles estão usando todos os recursos judiciários para mudança civil do nome de registro.
Ok, R., então. Um menino.
Durante quase toda a gravidez as ultra-sonografias obstétricas diziam ser uma menina. No oitavo mês, no entanto, o médico viu alguma coisa que mudou a sua opinião.
Ao nascer, três meses atrás, os pediatras da sala de parto reconheceram a genitália ambígua, mas designaram o sexo de nascimento feminino no registro civil, solicitaram um cariótipo e encaminharam a assim chamada recém-nascida para investigação endócrina.
O cariótipo ficou pronto antes da consulta. Os pais leram o resultado: 46, XY. E procuraram na internet o que aquilo queria dizer. E de repente tudo que era rosa virou azul, tudo que era barbie virou carrinho, tudo que era para a L. virou para o R. A cabeça deles estava uma bagunça; e a cabeça da irmã de 10 anos, uma bagunça um pouco maior.
Menina ou menino, afinal?
Até 6 a 7 semanas de gestação, o embrião apresenta gônadas indiferenciadas, primórdios dos dutos genitais internos masculinos e femininos (de Wolff e de Müller, respectivamente) e rudimentos genitais externos (tubérculo genital, pregas genitais, eminências lábio-escrotais e seio urogenital).
A presença do cromossomo Y, em especial do gene SRY, estimula diferenciação das gônadas em testículos; e os hormônios testiculares testosterona e hormônio anti-mülleriano promovem masculinização da genitália interna (desenvolvimento dos dutos de Wolff em epidídimos e dutos deferentes; e regressão dos dutos de Müller) e virilização da genitália externa (tubérculo genital em glande; pregas genitais em corpo do pênis; e eminências lábio-escrotais em bolsa escrotal).
A ausência do gene SRY faz com que as gônadas se diferenciem em ovários a partir da 10ª semana de gestação. A ausência de testosterona e hormônio anti-mülleriano promovem feminilização da genitália interna (desenvolvimento dos dutos de Müller em trompas, útero e 1/3 distal da vagina; e regressão dos dutos de Wolff) e da genitália externa (tubérculo genital em clitóris; pregas genitais em pequenos lábios; e eminências lábio-escrotais em grandes lábios).
Uma série de mutações genéticas podem provocar alteração na produção ou sensibilidade aos hormônios responsáveis pela diferenciação sexual, e portanto excesso de virilização em indivíduos XX ou o oposto, virilização insuficiente em indivíduos XY.
Em alguns casos, o(a) recém-nascido(a) já nasce com algum grau de ambiguidade genital. Isso quer dizer que a genitália externa não é tipicamente masculina ou feminina. Isso pode - e deve! - ser identificado já na sala de parto, e indica urgência em identificar a causa. Durante esse período, pode-se pedir adiamento do registro civil até que se tenha um diagnóstico.
Voltando ao caso em questão, o exame físico confirmou a ambiguidade genital. O falo tinha característica peniana, mas com tamanho pequeno e abertura da uretra no períneo (hipospádia); as eminências lábio-escrotais apresentavam abertura anterior e fusão posterior; à direita uma gônada podia ser palpada em posição escrotal, e à esquerda em posição inguinal.
Sim, tratava-se de uma genitália ambígua. Mas, diferente do gênero designado na sala de parto, tinha muito mais características masculinas que femininas. Ok, pode-se dizer que eu tenha sido influenciado por já saber o resultado do cariótipo; mas não, ter gônadas palpáveis sugere fortemente o sexo masculino. Ainda assim, independente do que eu achasse ou deixasse de achar, o mais correto é adiar a designação de gênero até que se tenha um diagnóstico.
O mais recompensador de tudo, no entanto, aconteceu ao fim da consulta. Não é uma situação fácil para os pais; aliás, muito pelo contrário, costuma ser bastante complicado. Durante a gestação, os pais escolhem nome, e criam expectativas, e decoram o quarto, e compram roupas, e contam para todo mundo... para de repente mudar tudo e o que era a L. vira o R.
- Você já acompanhou alguém assim? - me perguntou a mãe.
- Olha, não é uma condição assim tão comum, mas sim, eu já acompanhei alguns casos.
- Você não tem ideia...
- Ideia eu tenho. Não é fácil mesmo! Uns lidam melhor, outros lidam pior. E pelo que eu estou vendo até aqui, até que vocês estão lidando muito bem com essa situação.
- Você não tem ideia de como você tranquilizou a gente!
Bom... eu tento!

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